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Alexandre Sá

É artista-pesquisador, curador, crítico de arte e psicanalista. Pós-doutorando em História pelo PPGH-UFF sob supervisão de Daniel Aarão Reis. Pós-doutor em Filosofia pelo PPGF-UFRJ sob supervisão de Rafael Haddock Lobo. Pós-doutor em Estudos Contemporâneos das Artes pela Universidade Federal Fluminense sob supervisão de Tania Rivera. Doutor (2011) e mestre (2006) em Artes Visuais pela Escola de Belas-Artes da UFRJ, tendo sido orientado por Glória Ferreira. Membro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas - Comitê de Poéticas Artísticas. Sócio da Associação Brasileira de Críticos de Arte. Membro da Associação Nacional de História. Idealizador do projeto (no Instagram): @istonaoeum

http://lattes.cnpq.br/0137944963846547
Instagram: @istonaoeum

AMOR
01 de agosto 2021

Elxs acordaram em um tempo cíclico, onde a referência de passado e futuro tinha desaparecido quase que instantaneamente. E mesmo sabendo que de fato, o tempo é em si um exercício de circularidade a ser atravessado como que se mergulha, talvez tenham se habituado ao longo da vida, com a certeza ilógica da marcação parcial feita pelos relógios que carregavam em seus pulsos ou aqueles tantos que ficavam pendurados em suas respectivas paredes. O problema é que depois daquele momento específico de suspensão, tal civilização percebeu que o tempo, mesmo para as máquinas desejantes, já não mais conseguiria ser marcado pois, as ações que auxiliavam na percepção da passagem tórrida das horas e dos dias também foram penduradas. A sensação de que tais aparelhos não funcionavam mais se deu na mesma medida em que a iluminação trazida pelo dia e pela noite também começou a soar extremamente similar, perecendo de um sintoma que é próprio da demência. Tratava-se um tempo extenso, expandido, ampliado e talvez, exatamente por isso, por essa dificuldade de marcação simbólica, que tal emoção lhes parecia, em um primeiro momento, paradoxal, pois já não havia nem mesmo a possibilidade remota de um primeiro nem segundo. Era só o meio. Talvez tivesse sido apenas um momento percebido como tal, propício a angústias extremas. Aos poucos, perderam o hábito de quererem saber que horas seriam. Que horas poderiam vir a ser. Os dias, as semanas, os meses e os anos também não lhes interessavam mais. Mesmo as datas festivas e os aniversários começaram vagarosamente a perder seu tônus e talvez tenham enfrentado a realidade de um tempo que tornou-se apenas passagem de si. Na cidadela em que viviam, aos poucos, quaisquer diálogos que fizessem referência ao tempo, começaram a ser evitados. Não que o tempo tenha se tornado um tabu, mas por respeito ao processo trágico de não encontrar mais referências, optou-se por um certo tipo de acordo silencioso, no qual a temporalidade pressupostamente evolutiva, jamais tinha existido ali. Curiosamente e talvez por isso, as conversas começaram a apontar para questões mais densas e não menos graves sobre o sentido do viver e a realidade específica que também se dava como clausura. Mesmo evitando o tempo como elemento discursivo, os moradores daquele vilarejo sem medidas, compreenderam que também lhes seria salutar, evadirem-se de qualquer referência ao espaço. Começaram então um jogo semântico curioso de também esquecer os nomes das ruas e da cidade onde moravam. Se eventualmente surgia alguma necessidade de indicação de direção, como um passante nos pergunta atônito como chegar a determinado lugar, as respostas se davam pelas árvores, pelas cores das casas e pelos terrenos baldios em suas respectivas monumentalidades. Nada foi programado. Essa estrutura comunicativa que, diante do abismo absoluto do viver, escolheu suprimir em seus discursos elementos referenciais, se deu de forma natural e extremamente rápida. Mesmo sem nada dizer, a população compreendia que tal situação implicava na supressão de seguranças prévias. Consequentemente, as eleições foram adiadas ad infinitum. O único cartório da cidade também encerrou suas atividades por motivos óbvios. E de forma surpreendente, o xerife, o prefeito e o zelador, por perceberem que não seriam substituídos, exaustos que estavam, renunciaram aos seus cargos. A fatalidade da duração e a remota possibilidade de estarem atrelados à tais funções, lhes gerava um pânico inelutável. Não fizeram um comunicado formal, mas reuniram toda a sua família e alguns assessores e foram em absoluto silêncio e de maneira sorrateira, em busca de uma outra terra onde o tempo fosse tão ávido quanto estiveram acostumados ao longo de todo esse tempo ainda nomeável. Os aprisionados da única e charmosa cadeia da cidade, que ficava no final da avenida mais larga, quase que na fronteira com o nada de outro vilarejo, perceberam que a voz amarga e as botas por cima da mesa que ordenava gozosamente a aplicação de castigos, havia emudecido. Estranharam. Os guardas também.  Os dois vetores, numa tentativa fracassada de contar os dias e as noites resolveram, também sem combinação alguma, marcar o tempo na parede de suas selas respectivas que, de forma muito ligeira, preencheu-se de teor plástico sem nenhuma preocupação. Ao perceberem que tal voz das botas havia desaparecido, guardas e presos também não fizeram nenhum movimento de busca e apreensão da disciplina. Olharam-se mutuamente e de forma extremamente redundante, resolveram que já era hora, fosse ela qual fosse, de encontrar as chaves que abririam as celas de seus diálogos truncados. E assim o foi. Resolveram sair juntxs da cadeia e a cidade parecia não devastada. Mas oca. Deliciosamente mergulhada no precipício real da angústia de quando assume-se que o amanhã não virá. O elemento paradoxal dessa experiência, é que puderam ter alguma experiência. E olharam estupefatos as ruas que agora já tinha tido suas placas com os nomes de outrora retiradas. No lugar, havia nada. Nenhum nome. Apenas o vento que vez por outra levantava alguma poeira era capaz de provocar alguma solidez naquele ponto de pura passagem. Ser. Tão. Contudo, a população que resistia ao torpor de viver sem tempo nem espaço precisaria fazer uma reunião urgente para definir as novas diretrizes de convívio. Acharam que o melhor ponto de encontro seria a pequena ágora que havia sido construída como palanque. O enorme problema que se apresentava é que, embora soubessem onde ainda ficava tal marco, jamais conseguiriam indicar o horário possível do encontro. De todo modo, a única solução era ir de casa em casa, convidando os moradores para que fossem já para o local in-determinado. Contudo, jamais imaginariam que ir de casa em casa também colocaria a urgência do fórum em suspensão. Aproveitaram para entrar, tomar café, conversar sobre outros assuntos nada urgentes, olhar algumas fotos nas paredes e rir de não mais saber em qual ano teriam sido tiradas. A cidade que sempre corrida parecia, mesmo sabendo da ligeira importância do encontro democrático proposto por pequenos alguns, esqueceu-se da responsabilidade pública. Mergulhou na intimidade desconhecida e jamais quis sair dali. Foram noites memoráveis de música, candeeiro, fumaça, frio e causos. Dizem que para anunciar um outro dia, mesmo sabendo que este seria apenas um desejo fadado ao fracasso, reuniram em uma grande fogueira, feita como que uma barricada, todos os relógios que tinham parado. Talvez por vontade própria. No mais absoluto exercício da autonomia. Pura alegria.

 

Texto originalmente publicado na revista DasArtes em junho de 2020.

 

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