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Anderson Oliveira

Pesquisador de acervo na Casa do Povo. Mestre em Políticas Públicas e Formação Humana pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Possui graduação em Administração de Empresas pela Universidade Presbiteriana Mackenzie; e, Licenciatura em Pedagogia pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Vive e trabalha em São Paulo.

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ENTRE ENUNCIADOS, FORMAS, FORÇAS E CONTORNOS
22 de dezembro 2021

Para não nos esquecermos, há cinquenta e três anos atrás, iniciava-se o período mais sangrento, obscuro, brutal e fascista do Estado brasileiro - o governo militar, comumente conhecido como a “ditadura militar”. A ditadura civil-militar foi um período complexo na história do tempo presente do Brasil. Este período, marcado pela instituição normativa dos Atos Institucionais, repressões, torturas, exílios e mortes, ainda precisa ser mais bem compreendido por todos nós. Sabemos que aqueles que estabeleciam uma reflexão crítica sobre a política do regime militar ou que se distanciavam da “leitura” oficial sobre o Brasil e sobre os brasileiros por meio de suas proposições artísticas, estavam sujeitos às diversas formas de violência como à censura, tortura, exílio ou a medidas mais drásticas. 

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Segundo Renato Ortiz (2003, p. 88), em seu texto Cultura Brasileira e Identidade Nacional, “durante o período 64-80, a censura não se define tanto pelo veto a todo e qualquer produto cultural, mas age primeiro como repressão seletiva que impossibilita a emergência de determinados tipos de pensamento ou de obras artísticas”. Assim, o ato repressor atingia a especificidade da obra e não a generalidade da produção artística. Os casos de censura foram se acentuando nos anos seguintes ao golpe, restringindo cada vez mais a liberdade de expressão.

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Hélio Oiticica, esquema para o projeto do Parangolé-área: a ronda da morte, 1979/ Fundação Bienal de São Paulo

De acordo com pesquisa no acervo Memórias da Ditadura do Instituto Herzog, verifica-se que a ditadura militar no Brasil passou por três fases diferentes ao longo de seus 21 anos de duração. Na primeira fase predominou a legalização do regime autoritário, por meio de decretos-lei e de uma nova constituição, onde se instalou como um disfarce legalista - de 1964 a 1968. A segunda, de recrudescimento da repressão e da violência estatal contra os opositores da ditadura, em que vive os anos de terror - de 1969 a 1978. E, a terceira, de reabertura política, com a Lei da Anistia e o movimento pelas eleições diretas para presidente - de 1979 a 1985.

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Vista das obras de Carmela Gross na 34ª Bienal de São Paulo. © Levi Fanan/ Fundação Bienal de São Paulo

Ainda segundo Renato Ortiz, em termos culturais essa reorientação econômica trouxe consequências imediatas, pois, paralelamente ao crescimento do parque industrial e do mercado interno de bens materiais, fortalece-se o parque industrial de produção de cultura e o mercado de bens culturais. Ao entrarmos em contato com o relatório da Comissão Nacional da Verdade, mais especificamente, o texto sobre A resistência da sociedade civil às graves violações de direitos humanos (p. 344), vemos que “a cultura, os artistas e as formas de resistência se davam nas mais variadas áreas como a música, o teatro, a literatura e as artes plásticas”. Segundo o documento, de todas as tradições que participam da construção das interpretações sobre o país, a imaginação cultural brasileira compõe um dos seus mais fortes campos reflexivos.

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Vista da obra Terror Square (panther-darkness), 1968 de Antonio Dias na 34ª Bienal de São Paulo. © Levi Fanan/ Fundação Bienal de São Paulo

Durante todo o período da ditadura civil-militar, as várias linguagens estéticas produzidas no interior do campo artístico foram capazes de juntar diferentes horizontes de interpretação e criar narrativas e alegorias destinadas a opinar sobre o Brasil, sobretudo os movimentos daquele período. A história recente do país atravessa todas essas obras que apresentam, em comum, além de uma singular relação entre arte, política e história, uma inquietude estética e experimental, um impulso criativo e crítico, “uma nova visada artística”, como informa o relatório.

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Trata-se de um período de extraordinário florescimento cultural gerado por uma imaginação cujas linguagens estéticas encontravam-se em estado de disponibilidade, maleabilidade e trânsito permanente entre arte e realidade. Uma imaginação destemida, mobilizadora, com artistas dispostos a forjar outras noções de arte em suas obras (e, por vezes, em suas vidas) e, por meio da sua arte, expressar concepções de liberdade, de democracia, de vida pública, dos direitos, das minorias, do corpo, da natureza, da tecnologia, do profano e do absoluto. Uma imaginação democrática e refinada, jocosa, irônica, muitas vezes melancólica, capaz de misturar livremente tradições, estilos, suportes de comunicação e disposta a confrontar sistematicamente a ditadura por estar imbuída de genuíno apreço pela liberdade e crescente senso de direitos. (RELATÓRIO COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE, 2014, p.344).

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Com a promulgação do Ato Institucional nº5  (AI-5), em 13 de dezembro de 1968, o processo artístico-cultural, tal como vinha se desenvolvendo nas décadas anteriores, foi em grande parte inviabilizado; a vigorosa atividade que tensionava as relações entre experimentalismo e política, vanguarda e participação foi interrompida com o recrudescimento da censura, com as prisões e o exílio, forçado ou não de muitos artistas.

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Vista das obras de Lygia Pape na 34ª Bienal de São Paulo. © Levi Fanan/ Fundação Bienal de São Paulo

O conceito de obra explodiu (CNV, 2014, p.362). Essa foi a palavra de ordem que norteou a produção brasileira no campo das artes plásticas a partir do início da década de 1960, ampliando seu espectro da criação. O artista não realizava, então, apenas obras destinadas à contemplação, mas propunha também situações que deviam ser vividas e experimentadas por meio da participação daquele que, antes estático espectador, agora era agente ativo, criador e parte essencial daquela manifestação artística.

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Nas artes plásticas, ultrapassada a retração inicial provocada pelo golpe de 1964, o processo de redimensionamento estético articulou a assimilação das correntes internacionais – em especial a pop art norte-americana e o nouveau réalisme francês – e a imersão nas vivências e nas manifestações populares com o contexto político imediato de resistência ao regime militar. A “nova figuração brasileira”, uma das principais tendências da década de 1960 no Brasil, procurou situar o sujeito no contexto de uma sociedade massificante e repressiva, utilizando uma iconografia alusiva a essa cultura de massas, muitas vezes elegendo o povo como figura principal dessa sociedade, que não era apenas opressora por suas questões econômicas exclusivas, oriundas do sistema capitalista, mas também por seu regime ditatorial vigente.

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O engajamento político de artistas plásticos no Brasil, que expressavam resistência ao regime por meio de suas criações, provocava a diluição de barreiras éticas e concretas: a arte não mais se restringia aos limites físico e moral do museu, agora, reivindicava-se também as ruas e o uso do espaço comum, tensionado uma possível oposição a um poder que procurou formalizar a produção artística, a fim de neutralizar elementos considerados subversivos, imorais ou, simplesmente, extravagantes. A oposição dos artistas ao regime acelerou uma articulação que já havia progredido antes do regime militar se instaurar, em 1964.

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De acordo com o relatório da CNV (2014, p.363) o AI-5 combinou retomadas e experimentações de forma radical no campo das artes plásticas. A resistência teve de se impor diante de uma força que passou a atuar direta e violentamente, com a censura das obras, autocensura dos próprios criadores, o fechamento de exposições e a ausência de estímulos às situações experimentais por parte dos museus e galerias de arte. A presente produção ganha grandes proporções e se liga à definição de críticos como Roberto Pontual ao nomear como a “Geração MAM”, tanto como Frederico Morais. E, até mesmo ao que Francisco Bittencourt chama de “Geração tranca-ruas”, também comumente chamada de Geração AI-5. Uma arte intensa, diversa, corajosa, escandalosa, desesperada, transgressiva, comprometida, vanguardista. Enfim,  defendo que nesta data, lembremos também que resistência e oposição caminham juntas – muitas vezes, de mãos dadas – na produção das artes visuais no Brasil durante o regime militar. Seus autores não esperavam derrubar os militares do poder com seus quadros, em muitos casos; mas suas expressões são denúncias e gritos de afirmações de toda uma sociedade que se via comprimida e agredida. Uma resistência múltipla através de uma linguagem que toca o sensível, o poético e o político.

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