top of page
foto.Bruno01.jpeg

Bruno Bentolila

Doutorando na linha de pesquisa Arte, Sujeito e Cidade do PPGARTES-UERJ. Mestre em ciência da literatura (Teoria Literária) pela Faculdade de Letras da UFRJ. Vem estudando as relações entre as seguintes áreas: artes, história da arte, teatro, cinema e literatura.

 

http://lattes.cnpq.br/9927041231738202

Instagran: @brunobentolila 

OUTRAS ANTROPOFAGIAS

​

13 de janeiro 2023

“O Dé Nú Igbó,
O Fi Ofà Kan Soso Pa Igba Eranko.
A Wo Eran Pa Sí Ojúbo Ògún Lákayé,
Má Wo Mí Pa O.
Má Sì Fi Ofà Owo Re Dá Mi Lóró.
Odè Ò, Odè Ò, Odè Ò,
Òsoosì Ni Nbá Odè Inú Igbo Jà,
Wípé Kí Ó De Igbó Re.
Òsoosì Oloró Tí Nbá Oba Ségun,
O Bá Ajé Jà,
O Ségun.
Òsoosì O !
Má Bà Mi Jà O.
Ogùn Ni O Bá Mi Se O.”

Oriki africano

 

“A dor cantada era própria demais, única demais para ter acompanhamento, e
dividir a dor alheia
parecia falta de respeito.”

Ana Maria Gonçalves

 

“Depois das coisas que se estão vendo, não seria estranho que um dia destes,
esgotadas todas as existências de víveres, se regularize a oferta de sacrifícios
mortais.”

Gabriel García Marquez

 

“Com isso, fica muito difícil conversar com seus descendentes, os brasileiros
de hoje. Eles não sabem defender racionalmente as virtudes do irracionalismo.
Eles querem ser bárbaros, mas não é bárbaro quem quer. Só é bárbaro quem
consegue convencer disso os outros, usando aquele tipo de silogismo que os
escolásticos chamavam de bárbara . Vou explicar direitinho. Bárbara é um
silogismo em que as três proposições são afirmativas e universais. Por
exemplo: todos os bárbaros são meigos e imaginativos; ora, todos os 

brasileiros são meigos e imaginativos, logo todos os brasileiros são bárbaros.
Entendeu? Sem bárbara não tem bárbaro, e quem não gostar do trocadilho
tacape nele.”

Oswald de Andrade

Psicografado por Sérgio Paulo Rouanet

 

“De um lado, tráfico negreiro, latifúndio, escravidão e mandonismo, um
complexo de relações com regra própria, firmado durante a colônia e ao qual o
universalismo da civilização burguesa não chegava; de outro, sendo posto em
xeque pelo primeiro mas pondo-o em xeque também, a Lei (igual para todos), a
separação entre público e privado, as liberdades civis, o parlamento, o
patriotismo romântico, etc.”

Roberto Schwarz

 

“Com o devido respeito, gostaríamos que aqueles que se encarregam de
descrever a colonização se lembrassem de algo: é utópico verificar em que se
distingue um comportamento desumano de um outro comportamento
desumano.”

Franz Fanon

 

“A antropofagia é um termo usado para descrever a prática de se alimentar de
carne humana e foi usada como um símbolo de resistência cultural e política
em algumas partes do Brasil. O 8 de janeiro de 2023 foi o momento em que o
movimento de antropofagia e suas manifestações ganharam mais força no
país. Nesse dia, centenas de manifestantes se reuniram em frente ao
Congresso Nacional para protestar contra as políticas de direita que estavam
sendo impostas pelo governo e exigir que as questões sociais fossem
abordadas. Os manifestantes levantaram bandeiras, bateram panelas e
cantaram músicas de protesto como "Movimento Anthropofagico", que fala
sobre a resistência às forças conservadoras. Alguns deles também se vestiram
como antropófagos, usando máscaras e adereços para representar o
movimento. A manifestação mostrou que a antropofagia e suas manifestações
ainda possuem força e não estão prontas para desaparecer.”

Chat GPT


Atravessar o ano de 2022 e as comemorações dos cem anos da Semana de
Arte Moderna parece ter sido fácil se comparado ao ambiente político que
precisamos cruzar e que provavelmente, atravessaremos por algum tempo no
Brasil. O país encontra-se dividido entre dois grupos específicos: os defensores
de alguma democracia cambaleante, refletida por um pensamento de
esquerda, vencedor das últimas eleições presidenciais e os defensores da
abjeto patrimonialismo e mandonismo representados por um partido de
extrema direita. Importante lembrar que qualquer suposição de que tal partição
atual é nova, seria uma afirmação enviesada de desconhecimento histórico.
Originalmente o Brasil é e sempre foi um país cindido que, embora tenha
conseguido dissimular sua violência institucional, jamais foi capaz ou teve
interesse em problematizar de maneira mais densa sua formação dicotômica
que, em um primeiro momento, se reduz a colonizados e colonizadores ou
escravizados e senhores de engenho. Talvez esta partição ainda estruture
grande parte das relações, em todos os rincões do país.

Contudo, no começo do ano de 2023, especificamente em 08 de janeiro,
apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro, invadiram o congresso em
Brasília, como o objetivo de questionar o resultado das eleições, instaurando
uma tentativa de golpe de Estado que terminou com a destruição de grande
parte do patrimônio instalado nos prédios do governo. Neste pressuposto
levante, a onda de destruição incluiu mobiliário histórico, equipamentos de
informática, arquivos eletrônicos e também obras de arte. Naquele primeiro
domingo após a posse do presidente Luís Inácio Lula da Silva, pudemos
assistir a fúria de uma turba que, financiada por empresários, religiosos e
políticos, pôde estar em Brasília e que, com o apoio de parte das instâncias
responsáveis pela segurança do Distrito Federal, expuseram seus horrores,
sua violência e mais que isso, seu descaso absoluto diante de qualquer
elemento de cultura, compreendido aqui como um processo de construção
coletiva de memórias, experiências, hábitos e objetos.

Compreender tal ato como um levante também se revela como uma
abordagem ineficaz, já que em certo sentido, todo e qualquer levante se coloca

como movimento contrário ao status quo, sendo movido por uma intransponível
vontade radical de mudança, importando-se muito pouco com sua vitória ou
seu fracasso. Todo o levante guarda consigo, a consciência de sua fragilidade.
E a urgência que o põe de pé, é resultado de um agudo sufocamento imposto a
seus agentes durante algum tempo determinado. Nesse sentido, a ação vista
ali, ao contrário, teve por objetivo, além de questionar o resultado das urnas
nas eleições presidenciais, manter a lógica do governo anterior. Não se tratou
especificamente de um sufocamento imposto durante algum tempo, mas pelo
medo do sufocamento vindouro a partir de uma possível mudança de
perspectiva governamental. Tratou-se de uma tentativa de dirimir o
silenciamento próximo que obviamente, não era profético. Além de uma
estrutura de ação que visava a continuidade. E não a mudança.

 

Nós nos levantamos para manifestar nosso desejo de
emancipação, não para expô-lo como um bibelô em
uma vitrine, como uma roupa em um desfile de moda
ou como uma ‘performance’ em uma galeria de arte
contemporânea. A potência e a profundidade dos
levantes guardam a inocência fundamental do gesto
que os decide. (DIDI-HUBERMAN, 2019. p. 27).

 

O levante para Didi-Huberman é erigido por um desejo de emancipação e não
guardar consigo interesses de inserção direta em regimes de visibilidade como
por exemplo, os redes sociais. Assistindo parte das transmissões feitas pelos
próprios invasores, é possível considerar que parte da ação visava endossar
certa supremacia diante da opinião alheia e a exogenia do desejo estruturado
como imagem; movimento contrário à condição profunda que norteia a
inocência do levante que, contraditoriamente, no caso específico das invasões,
foi ainda motivado e gerenciado por um conjunto de mandantes, empresários e
em última instância pelas atitudes prévias do ex-presidente. Como por
exemplo, o questionamento feito ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral) e às
urnas eletrônicas.

O que se viu foi um anseio de tomada de assalto à revelia da lei e das
instituições democráticas e uma aposta inconteste na reversão do poder
instituído, que fosse capaz de devolver ao presidente anterior seu posto de

líder ou, como o mesmo, gostava de se denominar de mito. O que surpreende
é a radical ausência de dúvidas sobre tal possibilidade, alimentada de maneira
física pela presença maciça dos corpos e de maneira simbólica, pela destruição
de elementos representativos de uma história, por certo mal estabelecida, de
um país consideravelmente jovem, mas com as já clichês dimensões
continentais.

Se não se tratou de um levante, mas de uma tentativa de golpe, posteriormente
confirmado em documentos na casa de agentes de sua equipe, é importante
ainda questionar, como seria possível a estruturação de um desejo coletivo
consideravelmente atroz que, além de desconsiderar os horrores promovidos
pelo governo de Jair Bolsonaro, envolvendo a devastação da Amazonia, o
genocídio do povo Yanomami, a condução perversa dos programas de saúde
pública durante a epidemia da Covid-19, uma pífia política internacional entre
tantas outras coisas, opta, de alguma maneira, por endossar uma prática
metodológica de estrutura colonialista que é perfumada por uma herança
incontestável da ditadura militar, aqui estabelecida a partir de 1964. Somado a
isto, não é possível esquecer que o resultado das últimas eleições, embora
tenha tornado Luiz Inácio Lula da Silva vitorioso, sublinhou que 49,10% da
população, estava de acordo com as práticas do ex-presidente Jair Bolsonaro,
apesar de todas as notícias e comprovações de sua conduta enviesada,
reforçada pela fuga para outro país e a vergonhosa conduta de não entregar a
faixa presidencial ao seu sucessor.

Os caminhos para análise da barbárie são muitos e esbarrarão inevitavelmente
na esfera do inaceitável. De todo modo, é possível considerar a pouca
demarcação identitária e de programa entre os principais partidos no país, a
falta de comprometimento político de parte da população, a ausência de uma
investigação mais séria e a consequentemente condenação dos agentes
torturadores na ditadura, a devastação da imaginação política e de sua
capacidade de real transformação dos cenários, o uso indiscriminado das
redes e dos aplicativos de mensagem, bem como a ausência de uma real
proposta de regulamentação das mídias sociais. A presença fálica do estado e
de uma perspectiva assistencialista fundadora, o distanciamento jamais

realizado dos militares da vida política no Brasil, além da ascensão rápida e
extremamente perigosa da igreja neopentecostal. A isto podemos somar uma
disputa discursiva que se fantasia de disputa política, fundamentalmente pouco
dialética e baseada na cobiça do privilégio econômico, além do coro dos
descontentes, herdeiros de uma lógica colonial aliada a um arremedo de
neoliberalismo que se apresenta como fantasmagoria. Nenhuma novidade.

Fundamental destacar que tais possíveis análises, além de jamais justificarem
o que foi visto no segundo domingo do ano de 2023 no Brasil, não podem, por
um compromisso ético de análise, serem compreendidos como um conjunto de
fragilidades advindas sempre da esfera do outro. Trata-se de uma reunião de
questões que nos erigem como conglomerado e das quais, não
necessariamente em sua totalidade, nenhum de nós é capaz de escapar,
considerando suas reverberações na vida cotidiana e nas relações
estabelecidas entre nós. O grande eixo norteador de tais problemas é também,
e não unicamente, o dispositivo de poder e seu gozo que, estruturado no Brasil
a partir de uma perspectiva do território, do subjugo e do privilégio, termina por
contaminar as estruturas mais insuspeitas. Embora seja sabido que o poder é
em si, um elemento incontornável das próprias relações, me refiro aqui
especificamente, a uma ferida narrativa de poder à moda brasileira, instaurada
de maneira violentíssima desde a nossa fundação. Ou do nosso saque.

Por outro lado, não é possível pasteurizar tais relações, afirmando que os
ataques de 08 de janeiro de 2023 são decorrência natural e absoluta de um
processo histórico desde 1500. Além de leviano, me parece ingênuo naturalizar
tal crime. E embora saiba que estamos lutando todos os dias para
“desnaturalizar” o crime supostamente civilizatório que nos refundou, sob à luz
abismal do genocídio, tais ataques, além de serem distintos, estão alocados
em um outro momento histórico. Apesar disso, é possível fazer uma análise,
mesmo que imaginária, entre tais atos e A Marcha da Família com Deus pela
Liberdade (1964) pelo viés da formação discursiva que se estabelece de
maneira rizomática, advinda dos mais diversos pontos, o medo do fantasma do
comunismo e a defesa inconteste da moral e dos bons costumes, seja lá o que
isso for. De todo modo, os últimos acontecimentos explicitaram de maneira

ainda mais escancarada, um desejo de violência, que sempre existiu. Além de
endossarem a vontade incontestável de destruição do outro, das escolhas do
outro e da diversidade de opiniões.

Nesse sentido, se como hipótese, insistirmos na possibilidade de análise a
partir de uma dicotomia entre extrema direita e esquerda, considerando
inclusive que o centro e sua ideologia perfumam toda a relação, o que se viu foi
um considerável desprezo à esquerda, aqui compreendida como possível
zeladora de alguma diversidade, evidente inclusive, na posse do Presidente
Lula com a participação plural de diversos setores da sociedade. Contudo, não
se trata aqui de uma defesa radical da esquerda que obviamente, guarda
diversos problemas como qualquer eixo, mas da constatação da injustificável
reunião de um quantitativo considerável de pessoas, de todas as idades,
capazes de investirem seu desejo em um ato violento de apagamento da
própria escolha democrática e por conseguinte, da pluralidade, de modo a
manter a todo custo, uma branquitude de pensamento (reforça-se aqui, o
pensamento) que jamais abandonou o país. Branquitude esta, amparada pelo
privilégio e pela desmoralização política efetiva, sintomas capazes de serem
também detectados em outras lógicas discursivas.

Diante do assombro que se estabeleceu, tudo nos pareceu estranho. Estranho
também freudiano que conjuga de maneira particular as relações de
desconforto e de paradoxal reconhecimento de tal sensação como se fossem
elementos casados. Para Freud, a partir do idioma alemão, estranho e familiar
são velhos conhecidos que eventualmente se desconhecem, se assustam com
a presença do outro e com a possibilidade de convívio. Convívio este regido
pela experiência abissal do compartilhamento de sensações díspares e
compatibilizadas. Convívio que se presentifica como enigma a partir da
presença de duas esferas dissonantes que, apesar disso, insistem de maneira
esgarçada em manter alguma relação.

Nesta situação vivida, considerando o regime democrático como solo inevitável
para a estruturação do pensamento, o que nos causa estranheza, além da
audácia e de todo o crime óbvio, foi e ainda é, a possibilidade de investimento

maciço do desejo em um ato de proporções consideráveis, nutrido
fundamentalmente pela violência física e pelo vandalismo. Como todo e
qualquer estranhamento possível guarda em si, em seu útero epistemológico,
algo de familiar, talvez seja importante alguma reflexão sobre o que ali se
revelou como velho conhecido na carne nossa de todos os dias.

Se é surpreendente o desprezo à história do Brasil e às instituições
democráticas quando tal situação é exposta na esfera macro, é ao mesmo
tempo, óbvio, que as práticas territorialistas de dominação e de silenciamento,
do gozo pelo poder como lugar de mando e desmando são elementos
determinantes do processo colonizatório que, na esfera micro, cotidiana,
ordinária da vida de todos os dias, está estabelecida de maneira incontornável
nas comunidades, nas aldeias e nas periferias. E mesmo que não alocada
fortemente a partir de marcadores geográficos, está sempre presente em um
processo institucional de violência, discriminação e racismo entre os agentes
da própria sociedade, em pequenas gotas de convívio que de fato, só quem as
sofre, é capaz de narrá-las e evidenciá-las de forma mais ou menos justa, já
que horror e a devastação não cabem na linguagem.

Por outro lado, talvez seja importante considerar como esta violência e desejo
de subjugo se estabelece como mito fundador de uma lógica discursiva dentro
da cultura brasileira. E nesse sentido, talvez seja importante não esquecer da
noção de antropofagia, tão cara ao processo formativo de uma ideia de
identidade de povo. Certamente a noção de povo e identidade mereceriam
muitos outros comentários e análises, considerando a particularidade brasileira.
De todo modo, sabendo da extensão da questão, é importante delimitar que,
historicamente, a antropofagia, defendida inicialmente por Oswald de Andrade
no primeiro volume da Revista da Antropofagia em 1928, serviu como tentativa
de revelação, consideravelmente fantasmática, de um mito fundador de
brasilidade capaz de construir uma imagem//fantasia que sintetizaria parte da
partição formativa do país que, obviamente, estava intrinsecamente ligada ao
panorama econômico.

Se a noção de antropofagia equivale a todos os
brasileiros, independentemente de sua origem étnica,
com o nativo original, agora geralmente extinto, o
contexto econômico social que lhe deu origem
contradiz sua própria ideia. Última respiração do
movimento modernista que surgiu em São Paulo no
final da década de 1910, a antropofagia está
inextricavelmente ligada à substituição da produção de
cana-de-açúcar pelo café como o principal produto
dentro da economia nacional. Esta transição teve o
efeito de transferir a base de poder nacional do
Nordeste para o Sudeste, e se tornou um motor interno
crucial no desaparecimento do trabalho escravo em
favor dos trabalhadores migrantes europeus
assalariados. Esta última ocorreu não apenas por
interesse econômico, mas foi apoiada pela política de
inspiração eugênica de branqueamento da população
através da miscigenação, uma faceta de hibridismo que
muitas vezes é negligenciada dentro da retórica
celebrativa da arte brasileira no cenário global. Embora
não se possa associar o autor do manifesto, Oswald de
Andrade a tal ideologia, o contexto político e social que
tornou possível o seu surgimento não deve ser
superestimado. O próprio Manifesto Antropofágico teve
pouco impacto dentro da produção local em seu próprio
tempo, pois no ano seguinte à sua publicação o crash
do mercado internacional de 1929 mudou
irreversivelmente o caráter do modernismo no Brasil
.
(ASBURY, 2012. p. 145)

 

Importante ressaltar que a antropofagia brasileira tenta, a partir de
metodologias de guerra, convívio e devoração dos povos originários, sintetizar
um modo de relação historicamente impossível no Brasil, de modo a aplica-las
em uma narrativa estruturante capaz de instaurar alguma pedra fundamental
de um processo de colonização que, esteticamente, espelhava
majoritariamente até então, culturas e relações estrangeiras.
Fundamentalmente a francesa. Se há alguma boa-vontade de retomar uma
lógica de funcionamento primeva, de modo a trazê-la para a esfera da
construção mítico-imaginária de uma formação, talvez nos tenha faltado
naquele momento, uma real compreensão da violência prévia naqueles corpos
e daquelas culturas que em nada eram dissidentes e que já estavam aqui
antes de qualquer processo de suposto descobrimento. Operacionalmente e
epistemologicamente, a antropofagia no começo do século XX também poderia

ter sido lida como a evidência de um fracasso óbvio, no sentido de já não
termos sobrevivido à destruição física e epistêmica. Embora tivéssemos índios
no Brasil, a gigantesca quantidade de dizimados, parece ter sido ignorada.

Mas mais além disto, a impossibilidade e o fracasso também se colocam no
deslocamento de uma prática para o não-lugar de uma elite intelectual naquele
momento. Há um lapso considerável entre a antropofagia/canibalismo
praticada pelos povos originários que evidenciava um desejo de construção de
vínculos e de laços de maneira culturalmente natural e a sua posterior tomada
conceitual proposta a partir da primeira metade do século XX. A passagem da
prática indígena para o discurso colonizatório mereceria alguma consciência de
sua dificuldade epistemológica que se deu equivocadamente com a mudança
estrutural de sua linguagem, a supressão dos abismos culturais e a ignorância
às diferenças econômicas e políticas.

A antropofagia moderna se aproxima de uma estruturação mítica, instaurada
pela tessitura do discurso, dentro de um regime histórico que objetivava romper
algumas amarras da influência internacional. E que exatamente por isso,
estava também imerso em um processo ufanista de busca de um ideário de
nação. Por certo, isto não inviabiliza todo o esforço alocado, como busca
desassossegada de uma narrativa instituinte. O que talvez realmente importe, é
o que fizemos com tal tentativa téorico-cultural, elitista obviamente,
estabelecida. Contudo, é importante não esquecer que:

Sem acesso a modelos alternativos de Nação, os
indígenas continuaram a ocupar o mesmo lugar, após
as independências, que tinham antes. Assim, para
superar o colonialismo interno brasileiro, seria
necessário um reconhecimento das formas como os
discursos nacionais ocultaram e fomentaram a
colonialidade e ocultaram coletivos resistentes no
passado e no presente. (CLAVO, 2020. p. 50)

​

É fundamental não esquecer que a proposta que se desejou mítica,
compreendeu e abordou a cultura dos povos originários fundamentalmente
como imagem e como aposta, sem ter tentado se aproximar de maneira mais

contundente da realidade vivida por aqueles povos. E neste sentido, também
de cooptação imagética para estruturação de um “falso” mito de origem.
Portanto há naquele subsolo, algo de manutenção da colonialidade instituinte
que, mesmo estabelecendo alguma fratura pelo viés do estranhamento e do
humor, é ainda derivada de uma construção idealizada, romântica e distante da
diversidade cultural da qual se alimentava. E que em nenhum momento,
propõe de fato, uma investigação//vivência da alteridade. Como se, ao elencar
o mito antropofágico, o tomasse também de assalto, de modo a justificar a sua
própria existência e endogenia.

Diante disso, podemos sugerir que se, por um lado, o
movimento antropofágico parece ter contribuído para a
desfetichização da cultura europeia, especialmente em
sua versão tropical, por outro lado, sua identificação
acrítica com o ideário das vanguardas, levou a uma
imagem fantasiada do ‘brasileiro’ (...) sua fetichização
nos mantém no lugar marcado pela colonialidade
(ROLNIK, 2021. p. 41)

​

Talvez seja, exatamente neste nó, que possamos fazer alguma crítica à
antropofagia ali provocada: considerando a evidente devastação já percebida
no período, tal “conceito” só seria aplicável se estivesse recheado e consciente
de seu luto, de sua impossibilidade e de seu silenciamento. Ou pelo menos, se
fosse capaz de não recair no engano estrutural, que nos acompanha até hoje,
de que em alguns casos, a tomada de poder discursivo através da
transformação da alteridade em pura imagem, é inviável. E só se consolidaria,
caso fosse possível suprimir, por mais doloroso que seja, a ingenuidade de
retomar, reassumir e gozar do lugar de mando, coronel, juiz, pai, curador e em
última instância, do masculino//fálico.

Fálico como lugar nada deambulatório onde o discurso se estrutura, envelhece
e se torna dogma. Se é de fato possível alguma crítica a antropofagia, é a de
que talvez, nós (em compreensão mínima que somos passado, presente e futuro amalgamados) tenhamos compreendido mal e deixado com que nossa
cobiça borrasse de maneira torpe, a fronteira entre a potência e o poder.

Podemos sentir, de maneira confusa, que a potência
está do lado do rio e de sua origem, como se
denotasse a maneira através da qual, uma torrente
cria, por sua força intrínseca, a forma que seu leito
terá. Sentimos que o poder está mais ao lado do canal
ou da barreira: forma completamente diferente de
extrair, do rio e de sua origem, uma energia mais útil,
mais controlável. (DIDI-HUBERMAN, 2019. p. 49)

​

Se respeitada sua origem, a antropofagia não cabe em qualquer possibilidade
de modelação. Sendo pura potência, a antropofagia retumba em si, sua própria
urgência de nascimento e seu descontentamento. A possibilidade de aplicação
prática, de represamento e de uso é e merece ser mantida, neste caso, nula.
Embora a antropofagia seja instituída a partir de lógicas de poder, de captura e
de dominação, é através do ato de devorar o outro, no júbilo da carne em
sacrifício, que é feita a passagem encantada de retorno à potência, para que o
equilíbrio de si, da comunidade e do território, seja reestabelecido. Ou seja, a
antropofagia é também o retorno do não-lugar da potência, através da
devoração do lugar de poder. Para a encanteria deste movimento, não há
slogan, palavras de ordem ou manifestos possíveis. E exatamente por isso,
possibilidade alguma de modulação.

O fato de serem tão variadas as modalidades do
canibalismo e tão diversas suas funções reais ou
supostas, leva a duvidar que o conceito de canibalismo
adotado comumente possa ser definido de modo
preciso. Ele se dissolve ou se dispersa a partir do
momento em que tentamos agarrá-lo. O canibalismo
em si não tem uma realidade objetiva. É uma categoria
etnocêntrica: só existe aos olhos das sociedades que o
proíbem. Toda carne, qualquer que seja sua
procedência, é comida canibal para o budismo, que crê
na unidade da vida. Ao contrário, na África, na
Melanésia, vários povos tomavam a carne humana
como uma comida igual às outras – se não a melhor, a
mais respeitável, pois só ela, diziam ‘tem nome’. (Lévi-
Strauss. 2022. p. 106)

​

Tal devoração provocaria uma névoa de satisfação catártica que se daria pela
possibilidade de colocar em si, aquilo que do outro e no outro, é capaz de
seduzir por sua evidência, de modo a também se fazer reconhecer, como em
um espelho alimentar, o que em si é devorável. Em uma última instância, talvez
seja isso o nutriente fundamental de toda e qualquer relação. Ou de outra
maneira, talvez seja essa a particularidade mítica que estrutura a ínfima
partícula de potência que erige as relações. Logo, é possível considerar que
toda relação guarda consigo uma partícula de potência antropofágica.

Contudo, tais reflexões parecem completamente distantes de uma antropofagia
mítico-modernista da primeira metade do século XX no Brasil, pois houve
naquele momento, uma tentativa de aproximação hipotética de uma prática que
tem um objetivo específico, dentro de uma cultura específica e em um arco
histórico também específico. Esta tal antropofagia brasileira, perdida como toda
e qualquer origem, que nutre uma busca incessante de uma identidade fadada
a também estar sempre perdida, termina por se aproximar, na segunda metade
do século, mais de uma alegoria do que propriamente de um marco discursivo
de fundação.

É nas décadas de 1960 e 1970, que tal alegoria conhece sua possibilidade
contemporânea, potencializando sua ironia inevitável e assumindo a entropia
de sua materialidade simbólica. Na música, através da diversidade sonora, de
instrumentos e de referências. Na literatura, por uma crise estrutural da
narrativa tradicional. E nas Artes Visuais, em Hélio Oiticica por exemplo, pela
horizontalidade dos materiais, no sentido da fratura de uma certa hierarquia
matérica, além obviamente, das lógicas conceituais que ali operaram, de modo
a conjugar artes visuais e cultura popular.

A antropofagia que inicialmente se desejou mítica, por sua ambição de
generalidade, arrogância e abrangência, ignorando sua impossibilidade
metodológica, já que são práticas dissonantes, reencontra nos anos 1960 e
1970 sua fabulação e sua alegoria, aplicáveis a partir da experiência da
individualidade, tornando-se capaz de rir de si mesma na construção de uma
discursividade sem medo do fracasso, do engano e da desesperança. Não se

15
tratou, na Tropicália por exemplo, de uma tentativa de reconstrução de um
pensamento identitário, mas de uma atmosfera, de uma sensação de
brasilidade, não-abrangente, não-toda, que se estruturava como reação às
narrativas instituintes e a sua cooptação pela tradição. Nesse sentido, havia ali
um sufocamento que também se deu diante de um certo purismo da forma. E
houve, repleta de meandros, uma tentativa de reconciliação, agora em outra
esfera, do Brasil com o mercado internacional. Ampliada de maneira menos
equilibrada a partir dos anos 1980.

E se, como hipótese pensássemos em uma atualização desta antropofagia nos
dias de hoje, agora, já banhada pela espuma neoliberal? Como Suely Rolnik
aponta, trata-se de uma antropofagia zumbi. Um resto antropofágico já morto
que insiste em sobreviver de maneira esgarçada e trágica (não
necessariamente consciente). Se antes, ou, originariamente, a devoração se
dava estruturalmente para reforçar e afinar a potência do desejo em sua
relação, a lógica atual, contemporânea, é a de um certo pastiche discursivo
que toma o outro como objeto ou toma o objeto como possível outro, de modo
a fortalecer imaginariamente aquele que devora. O ser/objeto devorado é
apenas um sintoma de uma engrenagem mais ampla. Engrenagem esta onde
a experiência subjetiva é obstruída pela possibilidade real de acesso ao outro.
Movimento imprescindível para o potencial transfigurador de toda e qualquer
relação. (ROLNIK, 2021. p. 44)

 

Ou como defende Eduardo Sterzi defende:

um aglomerado indígena-alienígena (...) longe já de
toda ‘a identidade’ (...) nessa convergência encarnada
de sintoma e símbolo que ‘ele’ agora é, o teatro
dialético do eu e do outro, do próprio e do alheio, do
ser e do nada. (...) um vírus de laboratório (...) uma
facção (uma comunidade violenta formada a partir de
quimeras de identidade); e o antropófago, com suas
máscaras que são vórtices contraidentitários, deixando
para trás, antes de tudo, mesmo a ilusão de
humanidade – isto é, a humanidade como projeto de
exceção soberana entre as espécies -, aspira à outra-
face e, no extremo, à não-face, àquela im-pura
máscara radicalmente intercambiável; a uma face em

16
suma, que seja também uma ficção, isto é, um modo
de ser capaz de desativar, num só lance, os impérios
concorrentes da mentira e da verdade. (STERZI, 2022.
p. 206 e 207)

​

Na atualização poética proposta da figura do antropófago, é interessante a
sugestão de uma dialética teatral entre eu e o outro. Por certo caberia tentar
compreender de maneira aprofundada o que poderia vir a ser tal dialética
teatral. De todo modo, é suspeitável que a antropofagia seja hoje, além de
zumbi em seu pastiche, uma dialética de encenação, ou melhor, do seu próprio
drama; estrutura esta que sempre a norteou. Síntese da impossibilidade de
convívio. Puro estranhamento. Palco italiano. Cena. Aqui no sentido também
de um falseamento diante de seu público que assiste parte do desenrolar da
História no escuro confortável de um teatro consideravelmente tradicional e
assombrosamente mofado.

​

​

AS VISÕES DE SIMBA – UM CONVITE À VADIAGEM DO PENSAMENTO

​

04 de novembro 2021

(...)o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem — 

ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos(...).

Guimarães Rosa, Grande Sertão Veredas

 

Exu que tem duas cabeças, ele faz sua gira com fé

Uma é satanás do inferno outra é de Jesus de Nazaré

Ponto de Exu

​

A nova série de trabalhos de Simba pressupõe uma reflexão entre duas forças antagônicas: o bem o e mal materializados nas figuras míticas de Deus e o Diabo e como essas alegorias influem em nossas mentes– ou melhor, como enxergamos nossos próprios céus e infernos – como eles transitam entre si e entre nós (humanidade /o céu /o inferno). Esse antagonismo, longe de ser maniqueísta, problematiza como esses esquemas se fundem, a partir dos elementos machadianos encontrados em contos como A Igreja do Diabo (1884) e Sermão do Diabo (1893). Ao analisar os contos e observar os trabalhos do artista podemos notar como essa fusão de opostos se dá como reflexo da própria formação nacional sincrética: como por exemplo a subversão de São Sebastião em Oxóssi, comentados por Luiz Antônio Simas em Arruaças (2020). 

​

Como afirmou Simas, no mundo dos tupinambás, o inimigo poderia ser um constituinte do seu oponente. Ou seja, se alguém precisasse de outra pessoa para ser, não seria contraditória a ideia de aniquilação deste? Na mitologia tupinambá, aquele que matasse outra pessoa a comeria e a carregaria em seu estômago, “feito de túmulo e aconchego”, tornando-se ela própria o inimigo (SIMAS, 2020. Pág. 19). Para o autor estaria aí a chave para entender a figura de São Sebastião, que lutou ao lado dos portugueses contra os tupinambás nas batalhas de fundação do Rio de Janeiro: teria ele próprio se fundido em Oxóssi, o caboclo protetor dos indígenas e das florestas. Analogicamente, pensando em como essa fusão poderia ocorrer entre Deus e o Diabo, ou o bem e o mal, poderíamos imaginar que nessa “batalha”, teríamos um Deus-Diabo ou um Diabo-Deus. É mais ou menos essa lógica que rege o conto A Igreja do Diabo escrito por Machado de Assis em 1884, uma das inspirações para a pintura O inferno sobre a cabeça de Cristo – 33 velas de Simba.

01_OInferno.Simba.jpg

Simba,

O inferno sobre a cabeça de Cristo – 33 velas,

2021,

acrílica e giz pastel sobre tela,

80X100,

fotografia do artista.

No conto, dividido em 4 capítulos (I- Uma Ideia Mirífica / II – Entre Deus e o Diabo / III – A Boa Nova aos homens / IV – Franjas e Franjas) o Diabo resolve fundar a sua própria igreja pois, segundo o próprio, sentia-se “sem organização, sem regras, sem ritual, sem cânones, sem nada” (ASSIS. Obra Completa, v. II, p. 347). Ele decide ir até Deus comunicá-lo sobre sua decisão. Deus ouve com desconfiança e menosprezo e o expulsa do céu. O diabo funda a sua igreja, criando as regras ao avesso das regras divinas. Vemos como Machado retornará a esse assunto em O Sermão do Diabo (1893), em que os preceitos divinos são negados e reformulados a partir da desobediência. Como podemos observar logo no início: É um pedaço do evangelho do Diabo, justamente um sermão da montanha, à maneira de S. Mateus. Não se apavorem as almas católicas. Já Santo Agostinho dizia que ‘a igreja do Diabo imita a igreja de Deus’. Daí a semelhança entre os dois evangelhos (ASSIS. Obra Completa, v. II, p. 647). Contudo, após a adesão às regras satânicas, alguns apóstolos misteriosamente começaram a se desviar, e praticavam, às escondidas, antigas virtudes. O apóstolo do Diabo que mais o decepcionou foi um fraudador italiano de 50 anos, que era capaz de esconder-se na cama para não confessar que estava bem de saúde. O homem, após fazer amizade com um padre, começou a dar gratificações aos empregados, a confessar-se numa capela, benzendo-se duas vezes: ao ajoelhar-se e ao se levantar-se.  Com raiva e nervoso, o Diabo voltou ao céu para conhecer “a causa secreta de tão singular fenômeno”. Foi ouvido por Deus com muita complacência e paciência. Por fim, teria ouvido a seguinte resposta Dele: “Que queres tu, meu pobre Diabo? ...É a eterna contradição humana” (ASSIS. Obra Completa, v. II, p. 352).   

 

Ao final do conto, Machado produz ironicamente uma reflexão sobre a incerteza do livre arbítrio, a proibição e a censura – nos fazendo pensar que não somos seres únicos e permanentes. Que a humanidade não pode ser reduzida aos dois polos de maneira taxativa, mas que navegamos entre essas forças de maneira livre. Ou como afirma Miriam Andrade, o autor “enfoca comicamente a relação Deus/religião, homem/razão, trazendo à tona a discussão de como cada pessoa pode exercer a religiosidade sem medo de viver suas incertezas, ou mesmo de duvidar da eficácia da benevolência do homem” (ANDRADE, 2017. Pág. 253).  

 

Na tela de Simba, os lugares estão trocados: o céu encontra-se na parte inferior e o inferno e o pedestal com a cruz, na parte superior. Essa inversão daquilo que se espera dos lugares de representação entre céu e inferno é uma das problematizações feitas pelo trabalho. Isso é dado pela própria confirmação do título: “O inferno sobre a cabeça de Cristo”. Ou seja, a representação de como o mau pode estar presente na mente do bem, trabalhando em sua instabilidade. Outros elementos interessantes são os números: as 33 velas, os 3 anjos, os 3 santos (as cabeças com asas) e o dragão de 3 cabeças. Além da referência à idade de cristo e a santíssima Trindade, podemos também pensar nos três espaços do quadro: céu, purgatório e inferno (invertidos). Sendo o purgatório e o céu (que na verdade é o inferno) uma região única separada pelas 33 velas.  

 

Embora Simba não classifique algumas de suas ações fora da pintura como performance, uma delas, bem emblemática, merece ser brevemente narrada para que possamos mergulhar em seu processo criativo. Trata-se da tela “Quem é a mãe do Sol?” (da série Histórias da Terra do Sol – Eu sou querido no céu e sou amado no inferno), que foi exposta entre julho e setembro deste ano durante uma exposição no Instituto Nise da Silveira, no Engenho de Dentro. Como conclusão de um trabalho de residência artística foi solicitado ao artista que produzisse uma tela de 2 metros de comprimento. Com a ajuda de um amigo que emprestou a casa para que ele pudesse pintá-la, ele passou duas semanas criando o trabalho. Na primeira semana, ele e seu amigo subiram a escadaria da igreja da Penha para pedir a “benção para pintar a tela”. Porém, só conseguiu finalizá-la na madrugada anterior à mostra. Eles retornaram à igreja com a tela pronta para “agradecerem por tê-la pintado”. Essa benção e o agradecimento, embora não sejam nomeados como performance pelo artista, representam um desdobramento dos elementos religiosos presente em seu trabalho. Não a religião e o uso de símbolos divinos como mecanismos do culto religioso, mas como maneira de representação das relações humanas e suas reações aos impulsos de morte e vida, bem e mau – ou como essas coisas funcionam em um imaginário popular brasileiro tão heterogêneo. Mesmo não sendo religioso, Simba foi criado em meio à vivência da umbanda por alguns de seus familiares e presenciou o sincretismo com a igreja católica – como grande parte dos brasileiros.

 

Essa relação com a fé, aparece em outro trabalho intitulado “Pai Nosso que estais no céu – Todos são santos até que se prove o contrário”. Nesse quadro, vemos a imagem de um Jesus Negro com uma auréola e 5 anjos. Assim como em O inferno sobre a cabeça..., todos os anjos, santos e santas são todos negros. Em Pai Nosso, uma história que envolve a mãe e a avó do artista são fundamentais para que tenhamos a dimensão do projeto de Simba em recriar os símbolos religiosos sob uma perspectiva contracolonial. Conta a sua avó que a quando a sua mãe era pequena, a mesma teria sido impedida de participar de uma coroação de Nossa Senhora na igreja. O motivo: “não existem anjos negros”. Embora essa frase nos incomode, infelizmente retrata a falta de representatividade que o povo negro sofre em diversas esferas sociais, e consequentemente, na história da arte – o racismo psicológico descrito por Frantz Fanon em Pele Negra, Máscaras Brancas (1952).

Simba,

Pai Nosso que estais no céu – Todos são santos até que se prove o contrário,

2021,

acrílica e giz pastel sobre tela,

60X90,

fotografia do artista.

Para Fanon, a civilização branca e a cultura europeia impuseram ao negro um “desvio existencial”. Desde a alteridade pela linguagem, em que a valorização da cultura da metrópole se impõe sobre as colônias (“falar é existir para o outro”) até a experiência vivida do homem negro. A experiência das obras de Simba nos questiona sobre a representação dos símbolos religiosos diretamente ligados à cultura europeia (católica), como anjos e santos, a partir de uma perspectiva racial divergente: ou como os símbolos católicos foram sendo mesclados aos elementos de uma religiosidade brasileira, na profunda imersão às crenças de origem africana (o candomblé, e de maneira mais nacional, a umbanda).

​

Esse saber das ruas, o conhecimento ligado à cultura sincrética é um dos elementos que ajudam a pensar na formação de uma cultura nacional: na fusão entre o erudito e o popular, o desenho da nossa cultura foi sendo construído. Desde muito tempo, a cultura brasileira é marcada por uma universalidade justamente pela intrincada rede de conexões que foi criada em nossas terras e suas releituras: Knocking on Heaven´s Door de Bob Dylan é Batendo da Porta do Céu de Zé Ramalho, Chopin e Bach foram recriados pelos Índios Tabajaras, famoso duo de cearenses que fez grande sucesso na década de 1960 recriando grandes clássicos da música erudita brasileira e internacional em versões para viola e muitos outros exemplos. Pode-se dizer que somos antropofágicos mesmo antes da Semana de Arte Moderna de 1922. Transformamos o conhecimento universal em particularidades nossas.

​

Um dos trabalhos mais recentes de Simba chama-se “Guias e Caminhos”. E é uma releitura da pintura The Call de Paul Gauguin, de 1902. Nela, vemos uma mulher caminhando ao lado de uma figura demoníaca com um tridente afastando-se de outra pessoa com asas ao fundo. No lugar das flores na imagem do artista francês, vemos um mar de pessoas com traços bem estilizados na releitura feita pelo carioca. O olhar da moça - sendo polinésia ou brasileira – permanece o mesmo: parece incerto ou inseguro ao ser levada por seu/sua acompanhante e aparenta interceder o a visão do artista e a nossa (observadores). Esse olhar, juntamente com essa característica viva dos trabalhos de Simba parece ter sido desenvolvido a partir da ideia de memória – que assim como Gauguin, servia como base para desvendar o sentido do que se viu. Ao contrário dos impressionistas, Gauguin defendia o poder da memória como forma de estruturar um pensamento para as emoções. Como a memória não preserva os detalhes e ensurdece as cores, a pintura ao ar livre impressionista é questionada e ressignificada (ARGAN, 1992.Pgs. 133-134).

Paul Gauguin,

The Call,

1902,

160x119,

óleo sobre tela,

fonte: artsviewer

Simba,

Guias e caminhos,

2021,

acrílica sobre a tela,

51x42,

registro do artista

A operação provocada por essa série de trabalhos de Simba nos orienta a partir de um lugar entre a fé e as vivências humanas. Entre forças não-óbvias que nos governam. Somos convidados a traçar uma linha imaginária entre Machado de Assis, Gauguin, Elis Regina, santos e exus – numa espécie de antropofagia crítica ao reconhecimento da sabedoria popular e da invisibilidade do conhecimento ancestral das minorias. Somos convidados a vadiar em pensamento, na grandeza que essa palavra tem desde Clementina. 

​

​

​

​

Bibliografia

ANDRADE, M. P. M. . 'O Diabo dos contos de Machado de Assis: destino, herança e errância do Satã miltoniano'.. EM TESE (BELO HORIZONTE. IMPRESSO), 2017.

ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. Cia das Letras, 1992. 

ASSIS, Machado. Obra completa. Vol. 02. Ed. Nova Aguilar, 2008. 

FANON, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas. Ed. Ubu, 2020. 

SIMAS, Luiz Antônio/ RUFINO, Luiz / Lobo, Rafael-Haddock. Arruaças. Ed. Bazar do Tempo, 2020.

NOTAS SOBRE LA CIÉNAGA: OSCILAÇÕES ENTRE ADORMECIMENTOS E VOLUPTUOSIDADES

​

01 de agosto 2021

O longa La Ciénaga (2001), filme que marca a estreia da cineasta argentina Lucrecia Martel, é um objeto incomum na cinematografia argentina e, quiçá, no panorama latino-americano. O filme utiliza-se de elementos da imersão do som e das narrativas orais para criar um artifício que problematiza a narrativa clássica – não abandonando-a por completo – mas criando fragmentos e suspensões de tempo. A maioria das cenas começa no decorrer das ações, sem a transição onde veríamos um personagem em movimento de um espaço para o outro – mas quase sempre quando este já está em movimento ou em repouso. Os planos fechados muitas vezes introduzem os espectadores em sensações de dentro pra fora, ao contrário de um enquadramento aberto que situasse em qual local cada cena se passaria. Se pensarmos em como definir o filme ou contá-lo para alguém, já esbarraríamos em uma dificuldade. Estando condicionados à estrutura clássica, nos perguntamos: como reconhecer quais são as histórias centrais ou quem são as personagens principais? Vejamos a descrição da própria autora sobre o filme:

​

“Fevereiro no noroeste argentino. Sol que parte a terra e chuvas tropicais. No morro, algumas terras alagam. Essas ciénagas, lamaçais, são armadilhas mortais para os animais de passo pesado. Por outro lado, são fervedouros de bichinhos felizes. Esta história não trata de ciénagas, mas da cidade de La Ciénaga e arredores. A 90 quilômetros está o povoado Rey Muerto e próximo daí a fazenda La Mandrágora. A mandrágora é uma planta que se utilizou como sedativo, antes do éter e da morfina, quando era necessário que alguém suportasse algo doloroso como uma amputação. Nesta história é o nome de uma fazenda onde se cultivam pimentões vermelhos, e onde Mecha, uma mulher cinquentona, passa o verão com seus quatro filhos e o marido que tinge o cabelo. Mas isto é algo para esquecer rápido com um par de goles. Ainda que, como diz Tali, o álcool entra por uma porta e não se vai pela outra. Tali é prima de Mecha. Também tem quatro crianças e um marido amante da casa, da caça e dos filhos. Vive em La Ciénaga, em uma casa sem piscina. Dois acidentes reunirão estas duas famílias no campo, onde tratarão de sobreviver a um verão do demônio” (BARRENHA, 2013, pg. 127-128).

​

A descrição de Martel parece mais uma ambientação do que uma narrativa propriamente dita. Exatamente como somos introduzidos no universo fílmico da cineasta: em um espaço que é construído de dentro para fora, ou seja, a apresentação dos lugares se dá a partir da necessidade de como as cenas se desdobram. Além de situar o filme próximo ao povoado de Rey Muerto (seu curta-metragem de 1995), entendemos que se trata de uma imersão ao clima do noroeste argentino, especificamente da cidade de Salta, local de nascimento de Lucrecia. A geografia e o clima desta região se repetem em seus dois filmes seguintes (La Niña Santa, de 2004 e La Mujer Sin Cabeza, de 2008). Em uma entrevista, a cineasta afirma que La Niña Santa poderia ser um conto narrado pelos personagens ao redor da piscina em La Ciénaga. Observamos essa relação também nos meninos caçando no início de La Mujer Sin Cabeza, como uma referência direta aos garotos do primeiro filme. Ou seja, mesmo que a Martel não os defina como uma trilogia, podemos pensar que existe um elo de histórias fragmentadas que unem esses três longas.

​

Ao invés de fazer um filme com os mecanismos tradicionais, a autora propõe uma imersão subjetiva e recortada da realidade; a proximidade da câmera com os atores e os planos nos tornam cúmplices desses artefatos que provocam sensações de realidade, mesmo que não seja este seu objetivo a priori. Em La Ciénaga somos envoltos pelo clima de desassossego e imersão de sons e imagens de uma maneira não-convencional, levados a crer na sensação de realidade das cenas, mesmo com os adiamentos ou prolongamentos: 

Em uma entrevista, Martel define o seu processo de criação em quatro elementos: 1) um tom não dramatizado na atuação, 2) uma ideia muito expressionista na banda sonora, 3) um tratamento naturalista para a imagem e 4) um não-saber ver nos ângulos de filmagem. Refletir como esses elementos se organizam em La Ciénaga é tentar compreender como eles se amarram para o efeito final – menos para a compreensão de uma narrativa no sentido linear ou clássico, mas pela potência da percepção através do som e a presença descentralizadora das narrativas orais.

​

Sobre o primeiro elemento, vemos que a mistura entre atores consagrados (Graciela Borges e Mercedes Morán) e os não-atores destaca esse tom de fuga das interpretações psicologizantes de cada uma das personagens. Não podemos acessá-las por esse viés psicológico, porém de maneira mais física (os cortes, a transpiração, o sangue). A solidão e apatia de Gregório, que tinge o cabelo e passa o filme inteiro bêbado, é tão impactante quanto o olhar penetrante de Momi à Isabel. Inclusive, a ambiguidade dessa relação é potencializada: Momi, ao mesmo tempo que é apaixonada por ela, a chama de “china carnavalera”, assim como faz sua mãe (China vem de chinoca, que de acordo com o dicionário Michaelis é uma gíria racista também usada no Rio Grande do sul para designar mulheres indígenas, caboclas e também prostitutas). Outra questão importante neste e em outros filmes é a maneira como Lucrecia filma os empregados e indígenas, quase sempre de maneira embaçada ou fora de campo – como se expressasse a própria maneira em que estas pessoas são vistas socialmente. A empregada mais velha que traz um gelo para a bebida de Momi é frequentemente observada pela câmera fora de campo, pelas frestas, como uma sombra ou um fantasma.

​

Sobre o segundo elemento, o de enxergar o tratamento do som como expressionista, podemos vê-lo como uma maneira de usar a banda sonora de forma não-diegética, ou seja, destacada e fora do campo de visão do enquadramento da câmera. Como exemplo, na sequência de abertura do filme, os sons de trovões, os tiros de espingarda ao longe, o irritante som das cadeiras arranhando o chão de pedra, e as taças de vinho – todos provocam uma materialidade nos espectadores, uma dimensão fora da bidimensionalidade da imagem. Os sons funcionam como a terceira dimensão do espaço fílmico, eles atravessam nossa percepção de uma maneira bastante incisiva. Lucrecia os batiza de objetos sonoros. E quando Mecha cai sobre os copos, o som dessa quebra atravessa o plano em que Momi e Isabel estão deitadas no quarto de maneira muito marcada, nos chamando a atenção para o acidente. O tratamento do som em La Ciénaga age como uma espécie de mecanismo de imersão para os espectadores, conduzindo a narrativa e também a nossa percepção. O latido do cachorro que Luciano ouve em uma mistura de curiosidade e horror, vindo do muro do vizinho, por exemplo, existe no filme apenas como som – sem nunca ser visto.

​

A respeito do quarto elemento, o tratamento naturalista da imagem, temos uma contradição: ao mesmo tempo que afirma que seus filmes são artefatos, tomados de uma artificialidade, as imagens de Martel parecem de um naturalismo bastante verossímil. Ainda segundo ela, isso aconteceria por “um milagre”, já que ela assume a manipulação e construção da cena de maneira bem consciente, sem usar da improvisação. Talvez o “milagre” esteja realmente aí: por dominar tanto o universo construído, a sensação de realismo aparece quase que à revelia da artificialidade, por criar ambientações tão envolventes, passamos a duvidar e observar o quão estranha pode ser a realidade das coisas. E isso se amarra ao último e quarto elemento processual, a incerteza do olhar da câmera. 

​

Em uma entrevista, Lucrecia fala sobre a ideia de imersão. Ela explica que ela veio a partir de uma reprodução de uma pintura de Van Gogh que havia no quarto de sua avó paterna (Casas de palha em Cordeville, de 1890). Na pintura, as pinceladas marcariam um ritmo e cada objeto teria seu próprio ritmo distinto. Esta teria sido a primeira imagem que a fez pensar que vivemos submersos em algo. Depois, já adulta, quando ela teve a oportunidade conhecer mais os desenhos do pintor, a questão da imersão apenas foi confirmada. Uma espécie de partitura musical foi despertada por essas pinceladas de Van Gogh, ou seja, toda a banda sonora La Ciénaga foi pensada dessa forma. Cada som foi usado dentro de um conjunto perturbador de presságios que são anunciados pelo clima do filme, naquilo que Martel define como objetos sonoros. Os trovões são presságios da chuva, os tiros são presságios de um acidente com os meninos, o vidro quebrando anuncia que Mecha se acidentou. Os sons em conjunto, introduzem os espectadores em uma espécie de espaço sensorial aquático: os organismos vivos, as plantas e o som estão configurados para envolver e rodear, não para narrar e explicar cronologicamente uma história de maneira tradicional. A imersão se dá através desses objetos sonoros e os relatos orais. 

​

Poderíamos fazer uma aproximação dessa ideia do som como terceira dimensão do cinema ao pensarmos nas definições de opsignos, sonsignos e tatisignos descritas por Deleuze em Cinema 2 - A Imagem – Tempo, destacando a presença da imagem que nasce enquanto imagem-pensamento. Para o filósofo, a vida cotidiana não deixa subsistir senão em ligações sensório-motoras fracas, sendo substituídas pela imagem-ação de imagens ópticas puras (opsignos) e imagens sonoras puras (sonsignos) (DELEUZE, 2018). Ainda de acordo com ele, ambas seriam reguladas pelos tatisignos (um tocar característico do olhar, regulando as conexões entre as imagens e os sons puros).

​

A imagem do cotidiano em La Ciénaga e em outros filmes de Martel possui essa desvinculação da metáfora direta, mesmo que possamos lê-la de outra forma – criando algum sentido alegórico único. O filme é uma metáfora sobre a Argentina? A vaca atolada na lama simboliza o país? Em entrevista dada a Pinto Veas, a cineasta revela que não pensava na Argentina quando filmou a cena. “Depois as pessoas fazem essas análises, que são requintadas e às vezes muito reveladoras para mim. Mas quando estou criando eu digo: só estou pensando em uma vaca que morre na lama, não estou pensando em outra coisa” (PINTO VEAS, 2015). Vejamos o que diz Deleuze sobre a questão da capacidade de escolha das imagens óptico-sonoras e suas possíveis interpretações:

​

Notemos a esse respeito que até mesmo as metáforas são esquivas sensório-motoras, e nos inspiram algo a dizer quando já não sabemos o que fazer: são esquemas particulares de natureza afetiva. Ora, isso é um clichê. Um clichê é uma imagem sensório-motora da coisa. Como diz Bergson, não percebemos a coisa ou a imagem inteira, percebemos sempre menos, só percebemos o que estamos interessados em perceber, ou melhor, o que temos interesse em perceber, devido a nossos interesses econômicos, nossas crenças ideológicas, nossas exigências psicológicas. Portanto, geralmente percebemos apenas clichês. Mas, se nossos esquemas sensório-motores se bloqueiam ou se interrompem, então pode aparecer outro tipo de imagem: uma imagem óptico-sonora pura, a imagem inteira e sem metáfora, que faz surgir a coisa em si mesma, literalmente em seu excesso de horror ou beleza, em seu caráter radical ou injustificável, pois ela não tem mais que ser “justificada”, como bem ou como mal... (DELEUZE, 2018, p. 38).

​

A partir desta reflexão feita por Deleuze, podemos entender porque as imagens de Martel possuem esse caráter do desvio do olhar e da escuta. O olhar subjetivo da cineasta nos traz a possibilidade da dúvida, de não entender o enquadramento ou o fora de campo completamente – ou de ouvir as palavras apenas através de sussurros. Em um debate realizado no Lincoln Center, em Nova Iorque, conversando sobre o processo de elaboração de La Ciénaga, a cineasta afirma que foi com sua mãe até o local onde supostamente teria aparecido a imagem da Virgem – uma caixa d´água nos arredores de Salta (isso aparece como pano de fundo no filme através das imagens na televisão). Chegando lá, sua mãe teria se emocionado, enquanto ela não teria “visto nada”. Assim como Momi ao final do filme diz não ter visto nada na mesma caixa d´água – na esperança de ter recebido algum sinal divino sobre o paradeiro do seu objeto de desejo (Isabel), senta-se à beira da piscina e em silêncio olha para a paisagem. Cada um vê aquilo que tem interesse em ver, como afirmaria Bergson comentado por Deleuze. Ao nos confrontarmos com a imagem que não tem significado (sem metáfora), estaríamos diante dos signos ópticos e sonoros puros (opsignos e sonsignos) - o cinema em sua matéria bruta – o tempo – identificados por Deleuze como a chave para se pensar esta arte.

​

La Ciénaga é o produto dessa constante oscilação entre a volúpia dos corpos (os desejos) e o adormecimento destes (a inércia). Assim como são, analogicamente, as ciénagas: não são pântanos, como poderíamos interpretar a respeito da tradução do filme no Brasil (O Pântano), mas tratam-se de alagamentos provisórios provocados pelo transbordamento dos rios das montanhas durante o verão no noroeste argentino. São terrenos que se formam por um período de tempo, embora não tão perigosos como os pântanos, também são difíceis de se atravessar. Ao mesmo tempo que aparentam estar adormecidos, possuem uma vida abundante em seu interior, cheio de organismos vivos e em profunda ebulição. As suspensões do tempo no filme reforçam esse antagonismo entre algo em repouso ou agitado. Os corpos em repouso na cama se contrastam com as emoções internas (o medo, o abandono, a inveja, o incesto, o racismo). O aparente “nada acontece” é sempre assombrado por presságios de rompantes de violência ou fúria. Eles são anunciados a todo momento, e quando atingem seu ápice, são novamente suspensos por uma dilatação do tempo.

​

​

Referências:

​

BARRENHA, Natalia Christofoletti. A Experiência do cinema de Lucrecia Martel. Ed. Alameda, 2013.

CABALLERO, Juan; MODDY, Sarah. El rodaje como cuerpo: Una entrevista a Lucrecia Martel. Universidade da Califórnia, Berkeley, 2005. Disponível em: https://escholarship.org/

DELEUZE, Gilles. Cinema 2 – A Imagem - Tempo. Ed. 34, 2018.

PINTO VEAS, I. (2015). Lucrecia Martel, laFuga, 17. Disponível: http://2016.lafuga.cl/lucrecia-martel/735.

​

​

bottom of page