VOZES
Elimacuxi
Elimacuxi, 48, é uma mulher cis vivendo no Brasil do hemisfério norte. Multiartista que atua como professora no curso de artes visuais da UFRR e é doutoranda pelo PPGARTES/UERJ.
http://lattes.cnpq.br/6682470277789593
www.elimacuxi.blogspot.com
Sobre “retomada identitária”, “levante indígena” ou simplesmente “vamos conversar com quem quer papo com a gente”.
12de dezembro 2022
Ontem, 11 de dezembro de 2022, estive na abertura da terceira exposição do projeto Supernova do MAM/RJ, com curadoria de Beatriz Lemos. Apresentada como “exposição individual” de Uýra Sodoma, a mostra que ocupa o terceiro piso do Museu faz um mosaico com a pluralidade de vozes e faces dos povos originários na contemporaneidade brasileira. Em frente a um mural com dezenas de rostos de jovens artistas indígenas contemporâneos (sim, a mostra é individual, mas andamos em bando!), Uýra convida o público a sentar numa esteira e ouvir as vozes que saem da terra, dando conta de histórias antigas e contemporâneas de apagamentos e retomadas. É de re-existência indígena, de “brotos novos na terra queimada”, de vida apesar dos pesares – sem desprezá-los – que falam os trabalhos de Uýra presentes na exposição.
Resolvi escrever esse texto pra dizer que até o dia 18 de dezembro se coloca uma oportunidade para quem visitar o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro: acompanhar numa única experiência o intenso diálogo que artistas e curadores indígenas contemporâneos propõem para a sociedade brasileira em três distintas exposições. Nakoada: Estratégias para a Arte Moderna (até 18 de fevereiro 2022) e Atos de Revolta: outros imaginários sobre a Independência (até fevereiro de 2023), apresentam a possibilidade de discutir e pensar as relações do Brasil com seus povos originários, negando a negação sobre sua existência, afinal, como a exposição de Uýra argumenta: Aqui estamos.
Profundamente tocada pela visita e pela Espiral da Morte, performance realizada por Uýra junto de parentes da comunidade Maracanã na tarde de domingo, fiquei refletindo que foi apenas quando me transferi da periferia de São Paulo para a Amazônia, há mais de duas décadas, que tive oportunidade de refletir sobre minhas origens, meus olhos puxados e minha pele “não branca”. Foi indo ainda mais pras bordas do mundo-estado e chegando mais perto do mundo-aldeia, assim como fizeram tantos de meus ancestrais em busca de resistir, que pude perceber na minha carne a marca do violento processo de apagamento de parte fundamental da minha história de vida. No fim do século XX, cresci ouvindo no rádio que “cunhatã e curumim” agora só tinham “o dia 19 de abril1”, que no passado “nos deram espelhos e vimos um mundo doente” e que enquanto eu adolescia, “na enfermaria, todos os doentes estão cantando sucessos populares e todos os índios foram mortos”2. Aos jovens do século XXI, devido à coragem dos ancestrais e insistência dos contemporâneos em retomar o que nos foi negado, as mensagens que emergem da arte podem ser outras.
Repetindo o titio Jaider, lembrado por Uýra durante a abertura e presente no Museu (in memorian, na expo Nakoada) com o Coração do Mundo, “se a política não quer papo com a gente, a arte quer”. É isso. Quem se dispuser a ouvir, certamente perceberá que não se trata de simples retomada identitária ou levante, embora também seja os dois. É de nossas vida, de vida em abundância, brotada no meio da destruição e a despeito do desejo de que desapareçamos, que os indígenas contemporâneos erguem suas vozes.
A ME MOVER NO TREMEMBÉ
01 de agosto 2021
A memória é um terreno pantanoso, um tremembé, onde, por precaução, se move devagar e com cuidado.
Como historiadora e poeta, é de memória e de suas relações que pretendo tratar nessa coluna. Mas nesse primeiro texto quero me apresentar e, sobre o tema da memória, começar a desfiar algumas ideias.
Aviso logo que sou do tipo que não tacaria fogo em estátua. Sei que em tempos de polarização dos afetos, que andam cada vez mais afoitos, essa postura pode me condenar. Mas sou da opinião que, no campo de disputa das memórias, destruir uma estátua também é acabar com a prova material de que, num momento infeliz, determinada sociedade errou ao fazer suas homenagens… mas, como disse antes, esse será um fio a se trabalhar em outros textos que virão por aqui, por ora só quero me apresentar com o poema autobiográfico a seguir. Publicado originalmente em meu blog literário, por ocasião do último 19 de abril, gostaria que o texto fosse encarado como a minha maneira de tacar fogo na estátua do Borba Gato.
Nasci na Cachoeirinha, na favela do Jardim Peri Novo, no Peri Alto.
Bem pra lá do Tucuruvi... e aprendi ali
a falar, andar e acreditar que rio
era um troço que fedia à beça: Cabuçu, Tietê, Tamanduateí.
“Teu avô era bugre” repetia a avó italiana
“bugre mesmo, do mato”.
Eu ouvi, mal entendi, deixaram pra lá, guardei.
Da favela, numa manhã, fomos cuspidos pra lá do Jaçanã,
perto de Guarulhos e depois, de lá, de novo,
pra lá de Itaquera mas bem antes de Itaquá,
praquelas bandas de Sapopemba, do Itaim...
do lado do cemitério: Guaianases, onde eu cresci,
fim da zona leste, longe como a peste!
Dali saí para descobrir o time do Tatuapé,
perambular no Anhagabaú atrás de emprego
e me abandonar, chorando, ida e volta,
antes de voltar pra casa
num trem quase vazio, da Luz à Paranapiacaba
- meu jeito de matar o tempo e a fome
com a paisagem gratuita e o embalo da máquina.
Da minha juventude não há lembrança de alegria no Ibirapuera,
de banho em Bertioga, Mongaguá ou Barequeçaba,
memória mesmo só de ônibus-trem-metrô-perua,
intercalados, o corpo exposto em longas viagens
no caminho pela Cangaíba à Aricanduva
e a menina que escrevia poesia
e sonhava nas carteiras da escola
se deslocava para ser mão de obra que se cala
sem nome, sem história, sem lugar
- única forma de ser aceita e transitar -
pelo Pacaembu, Moema, Butantã, Perdizes...
A Liberdade ali, é só um bairro, por isso fugi.
19 de abril, segundo da pandemia,
do Cambará, Boa Vista, vasculho esse palimpsesto
e lanço em versos o som do meu peito
roraimado, resnascido, desapagado,
macuxi.
O tambor de uma ancestralidade difusa
ressoa na carne que a cidade não conseguiu destruir,
na carne que, ao resistir, também acusa
a falida e tosca aspiração da metrópole
Paulista-Higienópolis.