VOZES
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Elimacuxi
Elimacuxi, 48, é uma mulher cis vivendo no Brasil do hemisfério norte. Multiartista que atua como professora no curso de artes visuais da UFRR e é doutoranda pelo PPGARTES/UERJ.
http://lattes.cnpq.br/6682470277789593
www.elimacuxi.blogspot.com
A ME MOVER NO TREMEMBÉ
01 de agosto 2021
A memória é um terreno pantanoso, um tremembé, onde, por precaução, se move devagar e com cuidado.
Como historiadora e poeta, é de memória e de suas relações que pretendo tratar nessa coluna. Mas nesse primeiro texto quero me apresentar e, sobre o tema da memória, começar a desfiar algumas ideias.
Aviso logo que sou do tipo que não tacaria fogo em estátua. Sei que em tempos de polarização dos afetos, que andam cada vez mais afoitos, essa postura pode me condenar. Mas sou da opinião que, no campo de disputa das memórias, destruir uma estátua também é acabar com a prova material de que, num momento infeliz, determinada sociedade errou ao fazer suas homenagens… mas, como disse antes, esse será um fio a se trabalhar em outros textos que virão por aqui, por ora só quero me apresentar com o poema autobiográfico a seguir. Publicado originalmente em meu blog literário, por ocasião do último 19 de abril, gostaria que o texto fosse encarado como a minha maneira de tacar fogo na estátua do Borba Gato.
Nasci na Cachoeirinha, na favela do Jardim Peri Novo, no Peri Alto.
Bem pra lá do Tucuruvi... e aprendi ali
a falar, andar e acreditar que rio
era um troço que fedia à beça: Cabuçu, Tietê, Tamanduateí.
“Teu avô era bugre” repetia a avó italiana
“bugre mesmo, do mato”.
Eu ouvi, mal entendi, deixaram pra lá, guardei.
Da favela, numa manhã, fomos cuspidos pra lá do Jaçanã,
perto de Guarulhos e depois, de lá, de novo,
pra lá de Itaquera mas bem antes de Itaquá,
praquelas bandas de Sapopemba, do Itaim...
do lado do cemitério: Guaianases, onde eu cresci,
fim da zona leste, longe como a peste!
Dali saí para descobrir o time do Tatuapé,
perambular no Anhagabaú atrás de emprego
e me abandonar, chorando, ida e volta,
antes de voltar pra casa
num trem quase vazio, da Luz à Paranapiacaba
- meu jeito de matar o tempo e a fome
com a paisagem gratuita e o embalo da máquina.
Da minha juventude não há lembrança de alegria no Ibirapuera,
de banho em Bertioga, Mongaguá ou Barequeçaba,
memória mesmo só de ônibus-trem-metrô-perua,
intercalados, o corpo exposto em longas viagens
no caminho pela Cangaíba à Aricanduva
e a menina que escrevia poesia
e sonhava nas carteiras da escola
se deslocava para ser mão de obra que se cala
sem nome, sem história, sem lugar
- única forma de ser aceita e transitar -
pelo Pacaembu, Moema, Butantã, Perdizes...
A Liberdade ali, é só um bairro, por isso fugi.
19 de abril, segundo da pandemia,
do Cambará, Boa Vista, vasculho esse palimpsesto
e lanço em versos o som do meu peito
roraimado, resnascido, desapagado,
macuxi.
O tambor de uma ancestralidade difusa
ressoa na carne que a cidade não conseguiu destruir,
na carne que, ao resistir, também acusa
a falida e tosca aspiração da metrópole
Paulista-Higienópolis.