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Rafael Amorim

É poeta, pesquisador independente, graduado em Artes Visuais/Escultura pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro e mestrando no Programa de Pós-graduação da Universidade Federal da Bahia (PPGAV-UFBA) na linha de Processos Criativos em Artes Visuais. Foi estudante bolsista da Escola Livre de Artes do Galpão Bela Maré (2021) e do Programa de Formação Gratuito da Escola de Artes Visuais do Parque Lage (2019), além de autor de “como tratar paisagens feridas” (Ed. Garamond), seu livro de estreia contemplado pela 4ª edição do Prêmio Rio de Literatura na categoria Novo Autor Fluminense.

AS FRONTEIRAS QUE EXISTEM ENTRE A GENTE
21 de dezembro 2021

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FAZER MIRANTE
04 de novembro 2021

M/mapa
01 de agosto 2021

01.

09 de setembro de 2020.
Primeiros escritos em isolamento.
Sobre a saudade de percorrer as cidades.

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02.

As primeiras palavras do livro Harry Potter e a Ordem da Fênix (2003) jamais saíram da minha cabeça. Comento isso, pois sempre me pareceu curioso como uma única frase deslocada do assunto principal de uma narrativa que correlacionava o mundo fantasioso da trama à própria adolescência, pudesse me fisgar pela característica nada apoteótica comparada ao restante do texto a qual se inseria. Aquela frase, lida sob as telhas abafadas de uma varanda em Santíssimo, nos últimos meses de 2007, conectava o bairro quente na Zona Oeste Carioca à descrição de um Reino Unido estrategicamente sedutor. Confrontado pela banalidade de tal frase foi que finalmente me vi diante do lugar de reconhecimento instantâneo entre a palavra escrita e a minha própria herança simbólica – a herança de quem não vivia sob o clima ambientado pela série de livros, filmes e uma infinidade de produtos comercializados. Me encontrava encantado pela possibilidade de envolvimento que não se dava somente pela complexidade da trama escrita diretamente para a faixa etária a qual eu ocupava à época, mas por uma sentença inicial que capturava em mim um desejo prosaico para com a escrita letrada. O bairro de Santíssimo tornava-se palco para a descoberta de um olhar sobre a banalidade presente nas seguintes palavras: “O dia de verão mais quente do ano estava chegando ao fim.”

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Assuntar as primeiras frases de livros que li, nesta ou em outra década, parece trazer à tona a construção de um texto que edifica-se a partir de fragmentos de gêneros literários distintos. No entanto, tal texto (ou seria um inventário? uma coleção? uma espécie de bibliografia acidental?) tem seu início propositalmente embaçado. Existe ali, onde deveria existir uma letra maiúscula a iniciar seu primeiro parágrafo, uma lacuna instalada a acolher o olhar de quem me lê posteriormente. Sendo possível hoje apenas comunicar a aparição de palavras resgatadas para a construção do que passou a ser percebido como um interesse pela reorganização de Mapas e mapas. Trata-se de um procedimento que vagueia pela sobreposição de escritas e que, como uma concha quando aproximada do ouvido, revela o som de algo que passa a ser familiar somente quando é retirado de seu contexto comum e é remontado de outra maneira.

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Penso no texto e na memória como inventários para a construção de outros mapas, pois também sou tomado pela lembrança da minha família espremida na antiga Brasília Amarela de meu pai. Lembrança de uma década de noventa, de quando íamos à praia em decorrência do calor que comprimia os bairros entre vales da Zona Oeste: lembro perfeitamente de olhar pela janela e ver a nuvem de poeira misturada ao vapor que desprendia-se do asfalto. Como um prenúncio, era essa imagem que antecedia o banho de mar. Em meu estômago, algo se movia além da infância ansiosa. Tudo o que envolvia aquele trajeto (da paisagem ao transporte, das conversas entre adultos ao cheiro da comida levada de casa) parecia fazer parte de um procedimento muito importante para se chegar ao destino escolhido. Na Brasília Amarela, uma máquina que não contava com os atuais serviços de pesquisa, aos meus olhos, meu pai se orientava intuitivamente. Na minha cabeça que ainda não entendia muita coisa sobre trajetos, tampouco sabia sobre as placas de sinalização, meu pai era um Mapa.

As duas lembranças descritas (recortadas e reaproximadas) fazem parte desse gesto que parece ser característico àquelas pessoas que olham para o mundo com o desejo de reorganizá-lo. Reorganizar como quem alinhava os fragmentos de uma cartografia repleta de símbolos, construída e destruída em simultâneo, apropriando-se da sedução daquilo que não se compreende com uma única mirada. Curiosidade. As ruas desse desenho cartográfico são frases que atravessaram o tempo, lidas ou entreouvidas. Seus prédios são blocos quase maciços de textos inteiros, xerocados, empoeirados, revisitados. Ali o clima é equatorial: as palavras respondem às altas e constantes temperaturas; ora encharcadas pelas chuvas, ora úmidas pelo suor. Por isso as primeiras frases de alguns livros, ainda que há muito empoeirados e guardados dentro de caixas, me acenam na memória para seguir traçando conexões entre saberes instituídos e reencantando as coisas comuns.

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03.

À medida em que essa cartografia é alinhavada, novas paisagens são construídas e percorridas – agora criando conexões entre frentes altamente sedutoras no que diz respeito ao desejo de criar com o que já existe no mundo. O que então parece imperativo ao exercício de traçar percursos nessa prática, pode ser caracterizado como um espanto. Espanto diante de coisas tão corriqueiras que só se mostram quando se olha mais de uma vez para elas. Sim, fora ali, no espanto diante da frase que iniciava uma leitura habitual, que pude me aproximar dessa escrita sobre os dias nada extraordinários de quem nasceu desse lado do mundo. Ali, algo se moveu sentido ao meu interesse em pensar o cotidiano como uma cartografia que poderia ser contada e recontada diversas vezes.

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O espanto, portanto, acontece como ocorre à personagem de Galeano que, ao ver o mar pela primeira vez, “tremendo, gaguejando, pediu ao pai: Me ajuda a olhar!” [1] Esse olho que ainda não consegue significar tudo está tão assombrado que é preciso recorrer à partilha daquela paisagem, buscando findá-la em coletivo. Assim acontece quando leio que o dia de verão mais quente do ano estava chegando ao fim, como se alguém estivesse me sussurrando: eu também vejo. O espanto se converte em força propositora do trabalho que é reencantar o mundo com outras maneiras de percebê-lo. Um trabalho de convocar o outro a ver junto tudo o que não se quer ou não se pode ver sozinho. Mais tarde, leria em Bourriaud sobre a construção da geografia da pessoa artista na contemporaneidade, um debruçar sobre “as múltiplas redes nas quais evoluímos, os circuitos pelos quais nos movemos” [2] para que seja possível responder a outras topografias. Esse espanto vai auxiliar a singularização das coisas, reforçar que “o traçado do mundo contemporâneo não passa necessariamente pela sua figuração realista, mas por construções formais” [3] que se alinhavam às sensações de incompletude diante de algo que sempre esteve ali, como quem também diz: soube que aquilo que me faltava era justamente o que eu desconhecia existir e que agora existe de uma outra maneira. A isso endereço essas palavras, ao espanto que as causa.

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Espantado, foi que Robert Smithson, num dia quente da década de sessenta, descreveu seu regresso à cidade em que nasceu. Numa narrativa prosaica em que o artista constrói com suas palavras a paisagem desse passado industrial da cidade de Passaic, no Estado de Nova Jersey, Smithson se vê “vagando em um filme de imagens que quase não conseguia imaginar” [4] ao perceber que as máquinas escavadeiras, os canteiros de obras e as margens dos rios cumpriam a função de monumentos naquele território. Não porque já estivessem à espera de um futuro a perpetuar narrativas de poder naquele pedaço de mundo ou na cultura que ali fosse sovada pelas mãos do tempo. Eram monumentos porque foram ressingularizados como tais pela memória do artista que voltava ao seu território de nascença. No entanto, fariam também ressoar na memória e na carne de quem habitaria aquela cidade pela posterioridade todos os transtornos carregados pela palavra progresso naquela década.

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ENQUANTO ESCREVO, SE FAZ PRESENTE O BARULHO DE UMA MAQUITA. LEMBRO DO CANTO DAS CIGARRAS NA INFÂNCIA
TÃO DISTANTE.

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(Nos subúrbios do mundo: acordei com som de obras, como de costume. Esse mundo que nunca fica pronto. Compartilhei com Caroline. Certa vez dormi em Santa Teresa e estranhei os silêncios da manhã. Não tinha vizinho crente. Eu amei. Mas parecia que lá o mundo estava pronto. Não confiei. Voltei correndo. Estocolmo. Acostumar com o ruído, que estranho é a vida. Querer dormir à noite quando um bar vara a madrugada. Não saber o que fazer com o silêncio. uma maquita sempre ao fundo, que porre! Mas como são os lugares onde não se tem um canteiro de obras? De certo a ideia de progresso me assusta. Acho cafona o progresso. Mas a maquita é um caso a se pensar, um monumento sonoro)

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Só quem já teve sua carne atravessada pelos dias infinitos de obras intermináveis, por escavadeiras que passam a fazer parte do som de uma fauna local e britadeiras que cantam uma sinfonia avessa à que esperam os ouvidos quando despertos pela manhã – só quem já teve sua carne atravessada pelo dia mais quente do verão que estava chegando ao fim, em meio ao colapso do trânsito interrompido por extensos canteiros nas vias expressas de uma cidade em constantes transformações – saberá da necessidade de se reivindicar um outro modo de olhar e de lidar com a paisagem. Por isso, Smithson, espantado e convencido de que o futuro estaria “perdido em algum lugar nos depósitos de lixo do passado não histórico” [5], elabora sua cartografia a partir daquilo que o entrega a estranheza da incompletude de cidades que “se erguem em ruínas antes mesmo de serem construídas” [6]. Por isso suas palavras me encontram. Ao convocá-las aqui, também não deixo passar que sua perseguição aos “vazios monumentais”, é iniciada também com a leitura da primeira frase de um livro (“Li as propagandas da quarta-capa e passei os olhos pelo Earthworks. A primeira frase era: “O homem morto vagava na brisa.””) [7]. Não só por isso, evidentemente. Ao convocá-lo, recorro a este movimento de caráter investigativo sobre os “vazios monumentais que definem, sem tentar, os traços de memória de uma série de futuros abandonados.” [8]

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Quando os escombros do futuro da cidade de Passaic dão sinal de desaparecimento, engolidos pela nuvem de poeira dos dias que avançam sobre a memória, me lembro de Jota Mombaça reivindicando uma outra cartografia da região do Baldo, em Natal – RN. Jota, a quem nunca me foi apresentada, tudo bem, como vai?, me abre os poros com suas palavras ao sentenciar que para que fosse possível pensar um exercício cartográfico, primeiro talvez fosse necessário “uma sorte de procedimentos erráticos, protocolos afetivos” que em tentativa daria “conta de uma concepção de cidade que, por muitos lados, escapa às medições normatizantes.” [9] Descrita em um de seus primeiros textos a que tive contato, a ideia de cartografia a qual Jota endereçou ao Baldo, levava em consideração sua própria “geografia sentimental particular, experimentada desde a ruína e os escombros desse mesmo projeto desenvolvimentista – com a interdição, o Viaduto do Baldo se transformou num moribundo de concreto que paira sobre a cidade e sangra pelo rio esgotificado.” [10] Mas não é do interesse de Jota cartografar o Baldo como um domínio estritamente representativo. Ela recorre à memória e ao corpo, ao encontro entre sua carne e a região para circunscrevê-la como um “lugar-sumidouro, onde famílias inteiras agonizam calçadificadas à conversão das cidades em lugares de não viver; terra de desterrados”. [11] Para Jota, o Baldo, mesmo não abraçado como parte do modelo desenvolvimentista de uma urbanidade pensada sob “modulações próprias de uma forma de conhecimento marcada por princípios cartesianos, racionais e, em grande medida, coloniais” [12], ao ser experienciado por uma série de programas performativos, passava a anunciar “que cidades, como corpos, são sistemas relacionais abertos, e que, embora marcados pela áspera dureza do concreto, tornam-se suscetíveis à multiplicidade de investimentos de desejo, ativados por aqueles que a habitam na via da singularização.” [13]

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Espantado e com os poros abertos pelas palavras de Jota Mombaça, essas que me tornam cúmplice daquele território de muitas disputas – Jota me aponta uma percepção aguçada para com os “vazios monumentais” de Smithson – é que vou tateando um mapa que não representa a realidade da cidade em si. Um mapa que sua com o calor do último dia de verão que estava chegando ao fim, construído quando se resolve “colar memórias nos escombros, riscar os muros, derramar lágrimas num rio esgotificado, escrever com sangue um conjunto de trajetórias, etc.” [14] A cidade passa a ser um território de invenções, de palavras, de nomes, de outras significações, outros afetos, outras imagens. Ao ressingularizar a cidade para ressingularizar o que dela nos afeta é que Jota me propõe, com seu olhar sempre sentido à desarticulação de normas, a “fertilizar emergências ao mesmo tempo no corpo e na cidade, povoando-a com formas de vida que, de alguma maneira, foram soterradas pela mesma racionalidade que instituiu os Mapas de cartografia cartesiana como fonte única de toda verdade que se pode saber sobre o espaço urbano.” [14] É sim a partir desse aglomerado de memórias coladas aos muros feito lambe-lambe, dos escritos cartográficos de Jota Mombaça alinhavados na pele das minhas lembranças, que começo a ser visitado pela ideia de M/mapa.

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04.

O Mapa é institucional e circundante. Na infância, o Mapa-mundi prometia uma totalidade de mundo. Uma representação de latitudes e longitudes como cordas de um instrumento silencioso. Não parecia que o mundo fazia tanto barulho. Esse Mapa prometia as certezas irrefutáveis de pertencimento em duas únicas dimensões. Esse mapa dava nomes às fronteiras dos vizinhos, aos oceanos com sua maritimidade tão reduzida. O meu bairro não aparecia como meus olhos e meu corpo experienciavam. Havia algo de errado. O Mapa, logo depois, com o avanço e a popularização das tecnologias, passou a representar os bairros, as cidades e as ruas. O olhar do Mapa passou a ser quase microscópico, investigativo. O Mapa é institucional e circundante pois ele torna homogênea a nossa percepção dos espaços, cria ordenamentos e hierarquias de maneira plástica. Nunca é noite no Mapa porque o mapa é um simulador da paisagem, uma mimese dos espaços tal como idealizados: lugares cumprindo funções. Os ambulantes não têm voz no Mapa, os ônibus não buzinam sobre o Mapa, os tiros que ouço no fim da minha rua não ecoam na superfície do Mapa. Nele, é possível contar com o silêncio de uma cidade geometrizada, plana, cada vez mais branca. Cada vez mais limpa. Para Jean-Marc Besse, “um conjunto de constituído por traços geométricos e uma lista de nomes” [15]. Sobre o Mapa, o dia mais quente do verão nunca chegou ao fim não deixou o seu rastro de suor e poeira. Pois o Mapa também o é uma sequência de algoritmos a esquematizar os trajetos e os espaços numa visão individual do mundo. O Mapa “veicula certo número de intenções, políticas especialmente, e é destinado a produzir efeitos de poder na sociedade e na cultura.” [16] Ao consultá-lo, empreende-se um olhar servil em sua representação bidimensional da paisagem, como uma “entidade intencional que é aquela à qual nos reportamos como sendo a realidade” [17].

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No Mapa parece haver pouco lugar para o espanto. No Mapa, o terreno baldio próximo à minha casa é apenas uma representação feita há alguns meses e que não conta com o muro que foi construído ao seu redor mais recentemente. Para que o muro esteja no Mapa, é preciso levar em consideração que a contagem do tempo é outra, feita com outras medidas. Assim, como o terreno baldio se modifica, o Mapa não revela. Ele, o Mapa, não conta com a confiabilidade dos agentes que modificam o terreno baldio. O Mapa fixa a imagem do terreno baldio na minha retina. O Mapa até tenta fazer com que eu acredite que ele registra as mudanças espaciais e me entrega o terreno baldio em épocas diferentes, fazendo com que o olhar viaje por onde não esteve. A imagem do terreno baldio a qual me entrega o Mapa, se pretende inquestionável, tal como a maneira de se contar o tempo. O Mapa trabalha para que se acredite que, quando não se estava olhando, algo aconteceu ali e a prova disso é aquele registro. Como um anúncio, ele me vende o terreno baldio para que sua imagem ocupe algum espaço simbólico na cartografia construída por fragmentos do território que carregarei comigo pela posterioridade. De modo que agora, o terreno baldio será a recorrência com que acesso àquela delimitação espacial a qual o Mapa transformou numa imagem inquestionável. O Mapa promete a paisagem e, mais que um dispositivo de localização, o Mapa é um instrumento de repetição. Em sua lógica, a paisagem é acessada da mesma maneira por quem quer que a consulte. Ele, o Mapa, repete as mesmas estratégias de se estar no mundo para quem quer que o considere um oráculo. “O Mapa não se importa se eu estou dentro dele ou não [...] o Mapa é um olho desincumbido de um corpo” [...] todos são iguais perante o Mapa”. [18] Sendo homogêneo, o Mapa carrega consigo um acordo tácito com sua própria institucionalidade: ele oferta a garantia de paisagens e percursos apreensíveis, porém, fragmentados.

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Por outro lado, o mapa é como um procedimento intrínseco às brincadeiras da infância. Ele é constituído de muitas frentes que não só a representação do real, daquilo que existe alinhavado a outros sentidos e saberes. O mapa não é só representação e instrumento, mas complemento de outras experiências. Tudo no mapa é acúmulo, apologia ao imaginário lúdico das operações que transformam, na melhor das hipóteses, uma rua e seu pavimento numa quadra de queimado ou num jogo de amarelinha. O mapa permite que o pedaço de tijolo risque o chão para instaurar ali um outro território, este território de invenções – ainda que temporárias. O mapa permite que os fios que conectam um poste ao outro tornem-se depósitos de tênis arremessados com intenções psicogeográficas. Ou seja, no melhor sentido debordiano, que é também marxista, uma “crítica da geografia humana, através da qual os indivíduos e as comunidades têm a construir os lugares e os acontecimentos correspondendo à apropriação, já não só do seu trabalho, mas da sua história total”  [19]. No mapa, atento-me às pontas soltas de territórios pouco assistidos pelo poder público que comumente deveria tornar os vazios monumentais em lugares de comunhão. Trabalho, assim, tomando as pontas que escapam de um projeto de cidade esquecida abaixo da linha do Equador e as amarrando aos cadarços dos tênis arremessados sobre os fios, desfazendo alguns nós que elas carregam com alguma lógica mais normativa em sua circunscrição burocrática e as amarro às primeiras frases de livros lidos na infância. Desfaço seus nós para criar outros pontos de torsão entre suas pontas soltas e alguma palavra que tenha colecionado numa dessas leituras apressadas dentro de um ônibus rumo ao centro da cidade, com a cabeça muito próxima ao vidro engordurado e empoeirado e que chacoalha contra o metal, fazendo dessa incursão urbanística um momento nada silencioso. Sim, na minha memória ir e voltar para casa vai sempre fazer algum barulho.

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Em suas linhas, o mapa carrega boa parcela de recusa. Ele, o mapa, é um instrumento de experiências sensíveis e leva em consideração a aceitação ou não de algo em seu caráter circundante. Também na recusa é que o mapa se espalha, tomando outros espaços para um fazer de sensibilidades expressivas para onde antes não se olhava com tanta atenção. Neste sentido, o mapa é um lugar de recusa e oposição à essa geografia modulada que faz com que os corpos se adaptem, se contenham, não transbordem, não se compadeçam, não chorem, não sangrem, não proponham, não deem espaço para os terrenos baldios, não depedrem, não rearranjem, não usem os bancos das praças de outra maneira, não maculem a institucionalidade das filas, não andem sentido contrário a uma procissão, não convoquem o outro ao seu território de comunhão, não façam shows nos trens e metrôs, não derrubem os monumentos, não sigam em marcha ré, não estendam outras bandeiras, não caminhem sem sapatos nas zonas comerciais das cidades, não entrem de chinelos nos shoppings, não escrevam com tinta spray no alto dos edifícios, não manifestem insatisfação aos políticos atuais, não manifestem insatisfação à violência com perfil muito bem delimitado, não manifestem o amor e o desejo em suas formas mais distintas, não reclamem o abuso de poder e o avanço do conservadorismo como via expressa para a degradação da vida coletiva na própria cidade, não habitem de outra maneira os museus, não tomem para si os signos de uma cultura extinta pelo progresso e pelo amor ao capitalismo, não colecionem os fragmentos de uma cidade repartida, não questionem o Mapa e as imagens fabuladas por essa lógica de negação ao que escapa às delimitações muito bem tramadas contra qualquer desvio.

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O mapa “não exclui pessoas, o clima, o dia ou a noite, o cheiro, as janelas, a rotação ou a gravidade”, comenta a artista Fátima Aguiar. Em sua apreensão de cidade, o mapa é uma construção desviante por natureza. Ele é constituído pela formulação de outros caminhos, de atalhos e ruas que não existem na mimese cartográfica. Mas o é também enquanto gesto de recusa. Recusamos em conjunto quando Fátima me diz: “toda vez que o barulho dos carros se confunde com o do mar, eu me pergunto não como vivemos na cidade, mas como vivemos juntos nela?” [20]. Então, se eu posso, eu recuso. Recuso um passeio à orla da Lagoa em sua função postal que não conta seu passado enquanto aquisição de latifundiários. Eu recuso. Recuso uma ida à Barra da Tijuca em sua topologia transformada em loteamentos de uma arquitetura racionalista o que antes era restinga. Como alternativa à minha recusa, sigo por Passaic, junto de Smithson ou pela região do Baldo com Mombaça. Na minha recusa, recorro ainda a Bruna Mitrano, que é poeta e me diz sobre a construção de um mapa a partir de sua própria recusa à ideia de mar numa cidade a qual partilhamos. Em seu poema, Bruna partilha que os 70km, as 2horas e meia, os dois ônibus, as vinte e quatro estações de trem e as onze estações de metrô que a separam do mar são os responsáveis pela sua relação torpe com a orla. Por ser morar “à tanta preguiça de ir até o mar” é que nasce, junto do poema, como alternativa à distância, o gesto de todo dia pisar “nos dois montes de areia da calçada do vizinho” para lembrar que “só esquece o mar quem mora perto do mar.” [21] Na escrita de Bruna, que é também uma escrita úmida e que respinga sobre mim, reconheço sua recusa como esse tomar para si que é o processo cartográfico ao qual nossas subjetividades se envolvem. Ao recusar o trajeto, na poesia, Bruna Mitrano, a quem também nunca fui apresentado, está recusando as alegorias separatistas da ideia de mar nessa cidade colapsada. Quem poderá chegar até o mar quando o dia mais quente de verão estiver chegando ao fim? Eu recuso junto de Bruna porque “moro onde não escolhi, moro onde posso morar.” [22] Recuso as linhas de ônibus que tomaria para chegar à praia, contando o dinheiro da passagem, contando o dinheiro da comida, contando o dinheiro para a água – que curioso ter tanta água assim e ainda precisar comprar –, contando o tempo em que se pode ficar na areia sem levantar suspeitas, contando o tempo em que se pode ficar na areia até que o trânsito desafogue. Junto de Fátima e de Bruna, recuso porque posso recusar algumas travessias. Posso recusar, por exemplo, minha ida aos espaços que recortam e fragmentam a ideia de cultura, aqueles que contam a história de uma colônia anestesiada, que transformam em folclore os principais traços do rompimento entre centro e margem. Que recusam qualquer construção de outros mapas, de outros olhares. Espaços que, acostumados a recusarem, se espantam à minha recusa. Que se espantam quando a minha recusa é também sinônimo da minha presença.

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05.

A tarefa que tomo para casa – nesse insistente chacoalhar do vidro contra o metal dos ônibus – não almeja respostas efetivas. São setas que atravessam a mesma paisagem, reconfigurando-a. Assim, Mapa e mapa não são ideias excludentes uma da outra. Elas coexistem à medida em que é possível se apropriar, se debruçar e se reescrever sobre as superfícies dessa ideia de paisagem compartilhada todos os dias. Ora com quem senta ao meu lado na poltrona azul desse ônibus de volta para casa, ora com quem me lê e chega até onde eu chego – ou segue adiante quando eu não mais sigo. Elaboro um mapa que se inicia antes mesmo que eu perceba, como um álbum de família que a ser descoberto e que dele saem ramificações esquecidas. O mapa me auxilia a entender o estado de paridade com tudo o que me circunda, tudo o que me inscreve e tudo o que me escreve no mundo. No espanto com o que pede que se olhe mais vezes, encontro a matéria prima da remontagem que permite com que se possa confabular outras maneiras para aquele último dia de verão mais quente do ano. Para que o mapa se espalhe, é preciso que o espanto faça mover algo que parte do individual para o coletivo, uma vez que o estado coletivo em sociedade modula o individual, deixando-lhe marcas. O espalhar do mapa é a proliferação de uma ideia, seu endereçar. Fazer existir outras escritas e outras leituras, entregar ao mundo outros tipos de imagens. Uma outra ao leitura para o Mapa que não só o nome de uma marca norte-americana a vigiar a população. O mapa me chega depois de muitos espantos e recusas. Um espanto que é também deslumbre, é feitiço. Encantamento. Uma recusa que também se faz presença, tomada de voz, de lugar. Mapa/mapa é uma relação com a própria memória, movendo de lugar as imagens que ali residem. Sendo preciso recorrer às memórias individuais e coletivas como via de acesso a permitir montagens que fazem do Mapa/mapa um estrutura erigida por afetações de ordens distintas e imprecisas. Afetações de amor ou de fúria ao que pode ser considerado urbano e coletivo. Afetações de intuição ou de completo acaso com relação aos modos de habitar esta trama que cobre a realidade, provocando-a como quem altera os sentidos de um mesmo substantivo apenas alterando sua letra inicial.  

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06.

10 de maio de 2021.
Você ainda está ai?

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Referências bibliográficas.

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[1] GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. Porto Alegre: L&PM, 2002. p. 12.

[2] BOURRIAUD, Nicolas. Topocritique: l’art contemporain et l’investigation géographique. Paris: Palais de Tokyo/Cercle d’Art, 2003. p.9

[3] Ibidem. p. 21

[4] SMITHSON, Robert. Um passeio pelos monumentos de Passaic, Nova Jersey. Revista Arte&Ensaios, n.22, 2011. Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais EBA-UFRJ

[5] Ibidem. p. 167

[6] Ibidem. p. 165

[7] Ibidem. p. 164

[8] Ibidem p. 165

[9] MOMBAÇA, Jota. Como cartografar o desterro? Revista Arte ConTexto. Reflexão em arte, v.2, n. 6, Porto Alegre: 2015. Disponível em: http://artcontexto.com.br/textocurto_06_jota_mombaca.html

[10] Ibidem.

[11] Ibidem.

[12] Ibidem.

[13] Ibidem.

[14] Ibidem

[15] BESSE, Jean-Marc. Cartografar, construir, inventar – notas para uma epistemologia do encaminhamento do projeto. In: O gosto do mundo. trad. Annie Cambe. – Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2014. p.147.

[16]. Ibidem p. 144.

[17] Ibidem. 149

[18] CARVALHO, Ernesto de. Nunca é noite no mapa. Recife, 2016. Vídeo disponível em: https://vimeo.com/175423925

[19] DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Trad. Estela dos Santos Abreu. – Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. p. 117.

[20] AGUIAR, Fátima. mapas. Rio de Janeiro, 2020. Vídeo disponível em: https://vimeo.com/397474169

[21] MITRANO, Bruna. A 70km do mar. In: Autobiografias poético-políticas. Alberto Pucheu, 2019. Video disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=YyHf4hOn31U

[21] Ibidem.

 

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