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Rayssa V. Correa

Rayssa Veríssimo

Rayssa Veríssimo (São Pedro da Aldeia, RJ - 2000) é graduanda em Artes Visuais (IART-UERJ), com interesse pela escrita, pesquisa e curadoria. Foi editora executiva da revista Concinnitas e pesquisadora FAPERJ do projeto de iniciação científica "A pesquisa em Artes Visuais nas revistas acadêmicas". Atualmente é colunista da plataforma Acrítica, atua na educação do Instituto Casa Roberto Marinho e coordena o projeto "Arte & Profissionalização", uma iniciativa que deseja promover oficinas e debater sobre a dificuldade de trabalho e formação em Artes.

http://lattes.cnpq.br/4242348471753455
https://www.instagram.com/verissimo_rayssa/?hl=pt-br

O QUE SUSTENTA O RIO
20 de julho 2021

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Joelington Rios. O que sustenta o Rio, Theresa. Fotomontagem, 2018.

O Rio de Janeiro está em questão no cenário artístico: embora muitos se esqueçam de olhar para além da Capital, alguns artistas têm criado estratégias para lembrar que o Rio é muito mais do que a vista do Cristo pode alcançar. Neste movimento, constroem-se perspectivas que encaram a realidade e escapam da visão do trauma, como feito por Joelington Rios, artista nascido no quilombo Jamary dos Pretos (MA, 1997), que provoca a estrutura da “cidade maravilhosa”.

Na série “O que sustenta o Rio”, ele constrói um corpo-cidade a partir de intervenções no retrato daqueles que sustentam anonimamente essa estrutura: conserva-se o rosto e opera a cabeça. Esta interessa ao artista por ser a fonte das emoções, do cansaço e, assim como para os Yorùbá, da identidade. A cabeça é o Orí, criação de Ajàlá, parte mais vital do corpo humano, compositor da personalidade humana e depositório do destino. É pela cabeça que Joelington desvela o sujeito do título, dando fisionomia ao que é interrogativo. 
O artista desloca os símbolos do Cristo Redentor e Pão de Açúcar para construir uma outra imagem da cidade. Assim como a angulação da fotografia, contempla-se não mais a vista do topo que apresenta a Baía, mas o olhar de quem está embaixo. Desta forma, Joelington transforma a estética da beleza e opulência para instigar um imaginário simbólico que observa seus contrastes sociais.  Para uns, isto não é novidade, apenas representação de um cotidiano. Para outros, isto é a obrigação de enxergar o que não é seu espelho.
Ao mostrar os rostos, a fotografia se torna uma ferramenta de identidade dos grupos marginalizados, observados pelo artista como pessoas negras que sustentam a cidade. Assim, Joelington ao mesmo tempo age sobre o indivíduo e o coletivo. Ao alternar-se entre o retrato da pessoa e a paisagem da cidade, coletiviza-se um corpo, construindo a imagem de um corpo-cidade. Por outro lado, o olhar separado e atento a cada um também provoca uma individualização. Apesar disso, a imagem não recai sobre o clichê da fotografia de passe, aquela objetiva e supostamente neutra em 3x4. Com diferentes enquadramentos, Joelington não busca o documento de identidade, mas a singularidade diante da câmera.

 

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Joelington Rios. O que sustenta o Rio, Iansã. Fotomontagem, 2018.

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Joelington Rios. O que sustenta o Rio, Xangô. Fotomontagem, 2018.

Possuindo diferentes fundos, sua fotografia é em preto e branco, algo que desencadeia um jogo de poderes através das manipulações de luz e sombra. Como explicado por Mauricio Puls, em “Cor ou preto e branco? Razões de uma escolha”, enquanto a cor evidencia o real, o P&B afasta-se dele para delatar injustiças sociais e demandar uma intervenção do espectador, através da gradação da escala do cinza, que é composta por uma dialética entre opostos, isto é, entre a luz e a ausência dela.
Além disso, a fotomontagem se alterna entre o retrato e a paisagem. Como há um encaixe harmonioso entre o topo da cabeça e o símbolo carioca, temos a sensação de estar vendo um retrato, esquecendo-nos de uma linha horizontal que divide a imagem e traz outras incógnitas. O gênero retrato, de acordo com Puls, em “Retrato ou paisagem? Ou: Por que giramos a câmera?”, possui uma linha horizontal compacta, uma predominância do corpo sobre o fundo e um formato vertical que realça a figura, demandando uma leitura visual de cima para baixo.

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Joelington Rios. O que sustenta o Rio, Sobre a morte dentro do processo de sustentação. Fotomontagem, 2018.

Neste sentido, o encaixe harmonioso revela um caminho do olhar que se completa tal como costumamos fazer socialmente, ou seja, tal como percebemos simbolicamente as estruturas de poder que se mantêm hierarquicamente, quase como são construídos os prédios da mais alta escala financeira. O artista leva-nos a essa leitura vertical descendente, saindo da cabeça para o tronco; do mais glamouroso à base, através de uma linha horizontal que junta as duas imagens e separa as realidades, no mesmo movimento ínfimo que acontece socialmente.
No entanto, essa mesma linha é o que nos faz perceber que há uma paisagem além do retrato. Sobre esse gênero, Puls explica que ela favorece a narrativa de ações, ao contrário da descrição de relações feita pelo retrato. Além disso, a paisagem também põe a imagem numa linha infinita para ser lida da esquerda para a direita. Assim, percorremos de forma múltipla as imagens da série para primeiro compreender o sujeito do título e depois fabular sobre seu percurso, colocando-nos em estado de deambulação tal como Joelington anda pela cidade, atento a diferentes questões e latente aos questionamentos, como aponta Herkenhoff, em “Rio XXI – Vertentes Contemporâneas”.
Enquanto o Rio de Janeiro opera em nosso imaginário a partir de um simbólico glamouroso sustentado por fotografias que velam os indivíduos sob os pés do Cristo, Joelington desvela a face de quem é o alicerce do luxo, através do retrato, e reconhece o algoz através da clássica fotografia da paisagem carioca. No entanto, o retrato não se restringe ao humano e a paisagem à cidade, cria-se na verdade, um retrato único de um Rio de Janeiro alimentado por suas dialéticas sociais, um corpo-cidade. Com a intervenção sobre o topo da cabeça e com as escalas de luz, ele nos traz uma leitura quase metalinguística sobre as estruturas de poder, sem precisar insistir no discurso do trauma, produzindo uma reflexão através da transformação do símbolo carioca.

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Joelington Rios. O que sustenta o Rio, Maria. Fotomontagem, 2018

Texto originalmente publicado na revista A Palavra Solta, em abril de 2022. Disponível em: https://www.revistaapalavrasolta.com/post/o-que-sustenta-o-rio

QUANDO O FOGO SE APAGA
07 de setembro 2021

Fotografia de George Magaraia - Monumento a D. Pedro I do Brasil, praça Tiradentes, centro

Fotografia de George Magaraia - Monumento a D. Pedro I do Brasil, Praça Tiradentes, Centro histórico da cidade do Rio de Janeiro, Estado do Rio de Janeiro, Brasil. Fonte: acervo pessoal do fotógrafo. Contato: https://georgemagaraia.com.br/

Em 1862, na praça Tiradentes (RJ), marco do juramento da Constituição Imperial, erigiu-se a escultura equestre de D. Pedro I, construída em bronze por Louis Rochet e projetada por João Maximiano no contexto de um concurso da Escola Imperial de Belas Artes. Proposta por Dom Pedro II e recebida de Paris, com grande cortejo e discursos sobre o triunfo do Monarca para marcar a Independência do país, o primeiro monumento público brasileiro teve como símbolos os rios Amazonas, Madeira, São Francisco e Paraná, representados por animais e indígenas alegorizados. Enquanto Dom Pedro I está em posição imponente, com gestos a simular a proclamação; os maiores rios do país são representados por indígenas, sempre associados a animais, em alusão a um primitivismo. Além de contar com a inscrição “A Dom Pedro Primeiro, gratidão dos brasileiros”, o monumento também grava datas marcantes do Imperador, como casamentos e feitos políticos.

Fotografia de George Magaraia, detalhe da representação de Dom Pedro I
Fotografia de George Magaraia, detalhe da representação do Rio Amazonas

Fotografia de George Magaraia, detalhe da representação do Rio Amazonas

Fotografia de George Magaraia, detalhe da representação de Dom Pedro I

Proposto pelo sucessor do protagonista representado, esse monumento ergue uma ficção brasileira que celebra o mérito de um herói, criando um mito originário que apaga seus outros participantes e reforça a ideia de progresso em uma relação civilizado/primitivo. Enquanto o indígena é uma prosopopeia, o “civilizado” é a sinédoque do evento. Como afirma Souza, “ao se citar e retomar essas versões da Independência, silencia-se sobre várias questões candentes do início do século XIX. (...) Não se fala das movimentações nas praças públicas ou dos diversos significados da emancipação”. (2000, n.p.) Explicando sobre a Independência, a autora explicita interesses políticos e financeiros luso-brasileiros durante esse evento, assim como a participação de diversos outros agentes, desmascarando o símbolo individual construído e evidenciando as marcas de poder presentes na construção da memória desse acontecimento, o que será debatido por Achille Mbembe.

Para o intelectual camaronês, essa presença é considerada um prolongamento irremediável da dominação que dociliza os corpos através do imaginário, sendo uma extensão do terror que insiste em impor o projeto colonial. Em O que fazer com as estátuas e os monumentos coloniais?, o passado é extemporâneo, carregando suas forças para além de si e sendo sustentado por símbolos que operam no fictício. Nesse sentido, a história colonial não está encerrada e, mais do que nos contando a História, ela continua nos fustigando, assombrando nosso imaginário e disputando as narrativas através de simbologias, tornando necessário discutir sobre métodos para combatê-las. Sendo a iconoclastia a solução mais discutida, Mbembe propõe um deslocamento que ressignifique estátuas e monumentos coloniais em um parque-museu que discuta e eduque sobre suas marcas, sendo permitida apenas a construção de novos espaços educativos que nutram outras ficções. Também escapando da iconoclastia, porém igualmente da sepultura de Mbembe, Diambe da Silva disputa a narrativa da escultura equestre de D. Pedro I.

Pedro I, Praça Tiradentes, 2020 (do conjunto Devolta) Coleção da artista_

Pedro I, Praça Tiradentes, 2020 (do conjunto Devolta) . Coleção da artista.

Enfrentando a memória hegemônica construída por monumentos e a sua violência não narrada, Diambe criou o conjunto Devolta, que teve início com a escultura equestre de Dom Pedro I, em 2020. Ao contrário da individualidade evocada por esse monumento, a artista convidou suas comparsas para a realização de um ritual de insurreição que, assim como em outras situações instauradas pelo conjunto Devolta [1], consiste em uma emboscada de fogo. A ação dura cerca de trinta minutos, mas seu início e fim são mais longos que a combustão: para a sua realização, a artista pesquisa possíveis rotas de fuga, observa o horário de ronda policial, estuda a legislação, carrega consigo respaldos jurídicos e a camisa “não serei bixa presa por causa de Arte” e o seu fim acontece apenas quando há certeza de que as participantes chegaram em casa com segurança.

A coreografia aconteceu com Ventura Profana ao fundo, rasgando e dispondo as roupas em torno da escultura, que após seriam molhadas com líquido inflamável, simultaneamente, por uma pessoa vestida de branco e outra de preto. Neste instante de revolta, ocorre uma força coletiva que se contrapõe ao triunfo individual do monumento da praça Tiradentes. Enquanto este celebra o mito de uma glória, Devolta reergue a coletividade e torna possível resgatarmos a inscrita suposta gratidão brasileira. Se a memória é uma ficção, então a artista tenciona a narrativa fixada em bronze e, com a força das suas comparsas, cria uma coreografia que permite sua múltipla reprodução e antecipa, na sociedade, o debate contemporâneo sobre patrimônio de esculturas públicas.

Assim, Diambe entra no caloroso debate sobre iconoclastia escapando das soluções dicotômicas. Sem destruir ou deslocar, a artista opera o monumento dentro da sua essência e da potência da Arte: o simbólico. Se o monumento anacrônico da praça Tiradentes ganha vitalidade no imaginário, então Diambe o golpeia no seu ponto de força, ambos disputando a memória coletiva. Como afirma Pollyana Quintella (2020), “não era sobre destruir o monumento, mas intoxicá-lo com a fumaça preta, dar-lhe um chamado, acrescentar-lhe um novo episódio histórico. Dom Pedro foi brevemente sequestrado, embora ainda protegido pela polícia”. Entretanto, a brevidade desse sequestro poderia criar um questionamento naqueles que desejam as cinzas do Imperador.

Quando o fogo se apaga e o Imperador ressurge, fica a amargura da irresolução deixada pela mesma potência do simbólico, mas como disse Rancière (2008, p.73), “não se trata (..) de saber se ela [a ação simbólica] é uma saída bem-sucedida da solidão artística em direção à realidade das relações de poder, mas sim que forças ela dá à ação coletiva contra as forças da dominação que toma como alvo”. Refletindo, o filósofo francês nega a noção de realidade, compreendendo que ela é um tecido sensível, também uma construção fictícia, o que liberta a Arte dos desejosos de um continuum sensível que se transforme em compreensão do mundo ou em vontade de mudá-lo.

 

Devolta, apesar de desobrigada a fazer a sublimação do monumento por operar na mesma via fictícia da realidade, também cura essa amargura quando expõe a frase “não serei bixa presa por causa de Arte”, demonstrando outras preocupações da artista que se sobrepõem ao clamor daqueles que desejam ser salvos pela Arte. Assim, a coreografia de Diambe opera no fictício da memória, golpeando o mito da Independência; mas também no fictício da realidade, ao prevenir seu corpo já policiado de outras prisões. Entretanto, a sentença que a artista dá à Arte não se limita à frase, ela é reforçada na linguagem escolhida para realizar a emboscada.

Ao optar pela coreografia, a artista instiga diversos tipos de independência. A primeira é a nossa liberdade da narrativa hegemônica, bem como a da suposta gratidão brasileira entalhada sobre o bronze; a segunda é uma autonomia das próprias definições das linguagens artísticas. Ao contrário do comum em Arte, Devolta se libertou das classificações de série e performance que, para a artista, implicam em uma relação de desempenho e, apesar do conjunto poder ser lido no campo ampliado de outras linguagens, Diambe escolheu estrategicamente a coreografia. Esta opera junto com a sentença exposta em sua camisa: ao entrar em conformidade com a lei, a própria artista está livre, mas Devolta não opera sozinha: quando Diambe se liberta, os artistas também se libertam, assim como a possibilidade de uma outra simbologia da independência brasileira. Para o bronze que permanece, resta a força simbólica do fogo de Diambe que estimula novas danças para esses marcos de celebração.

 

[1] João, Isabel e Atlântica, do conjunto Devolta, podem atualmente ser vistos no Pivô Satélite, IMS Paulista, Museu de Arte do Rio e Galpão Fortes D'Aloia e Gabriel.

 

 

Referências:

DIAS, Vera. Monumento a Pedro I na Praça Tiradentes. As histórias dos monumentos do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 03, mar. 2013. Disponível em: http://ashistoriasdosmonumentosdorio.blogspot.com/2013/03/monumento-pedro-i-na-praca-tiradentes.html. Acesso em 21 maio 2021.

MBEMBE, Achille. O que fazer com as estátuas e os monumentos coloniais?. Revista Rosa. [S.I.], v.2, n.2, nov. 2020. Disponível em: https://revistarosa.com/2/o-que-fazer-com-as-estatuas-e-os-monumentos-coloniais. Acesso em: 21 maio 2021.

QUINTELLA, Pollyana. Dom Pedro I sitiado: contrausos para a primeira escultura pública do Brasil. Revista A Palavra Solta. Rio de Janeiro, 14 set. 2020. Disponível em: https://www.revistaapalavrasolta.com/post/dom-pedro-i-sitiado-contrausos-para-a-primeira-escultura-p%C3%BAblica-do-brasil. Acesso em: 25 maio 2021.

RANCIÈRE, Jacques. Paradoxos da arte política. In: O espectador emancipado. São Paulo: Martins Fontes, 2012 [2008], pp. 51-81.

SOUZA, Iara Lis C. A Independência do Brasil (descobrindo o Brasil). Rio de Janeiro: Zahar, 2000. Disponível em: https://books.google.com.br/books?hl=pt-BR&lr=&id=PXLTDwAAQBAJ&oi=fnd&pg=PT2&dq=independencia+do+brasil+mitos&ots=4_258ZY4_o&sig=ue214dhsxko6HliAd6MESYtxSxg#v=onepage&q=independencia%20do%20brasil%20mitos&f=false. Acesso em: 21 maio 2021.

 

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