top of page
WhatsApp Image 2021-07-19 at  2.jpg

Renata Gesomino

Professora adjunta do Departamento de Ensino da Arte e Cultura Popular do

IART-UERJ e do PPGARTES-UERJ. Coordena o projeto de extensão MACP

vinculado ao programa de extensão Acrítica.

http://lattes.cnpq.br/9818488667824810

NO (ENTRE)TEMPO DAS IMAGENS
25 de julho 2022

As mudanças das estações configuram uma forma de contagem do tempo, de
uma temporalidade circular, de “eternos retornos” de um “mesmo” que não é
idêntico. No tempo da contingência, as narrativas e discursos são reinventados
e a intencionalidade é negociada na retrospectividade dos fatos e dos afetos. A
partir desta premissa, a exposição “No (entre)tempo das imagens” apresentará
ao público um conjunto de obras de arte que dialogam entre si a partir da
criação de historicidades específicas. No entremeio dos signos gerados pela
justaposição estratégica desses trabalhos, localizamos um espaço de
reconstrução hermenêutica que conta histórias sobre as comunidades
imaginadas, sobre uma brasilidade de ontem e de hoje, sobre ancestralidades
e a gênesis dos processos de pertencimento e de identificação.
Na mostra é possível perceber a existência de um tempo vivido que se constrói
efemeramente na relação entre público e obra, na relação imediata entre o olho
e a imagem. A memória relacional promove uma pequena fissura poética capaz
de reconstruir as narrativas estéticas com base em nossos afetos ocultos ou
esquecidos. A partir de nossas experiências individuais e/ou coletivas as obras
de arte ganham outros contornos, reconstruindo e atualizando repertórios
simbólicos. Um tempo de retomadas através da arte.
Deste modo, a pintura experimental do artista Otávio Avancini constrói um
diálogo com uma temporalidade particular, voltada para um passado pré-
histórico, sonhado e idealizado. Na pintura T-calando de 2021, vemos cores e
gestos formando manchas difusas, com contornos esvanecidos por pinceladas
orgânicas, que sugerem a forma de um réptil atravessado pela vegetação. O
artista reivindica uma ancestralidade da fauna e flora. O gesto impresso na
pintura de Avancini se expande da tela para as suas performances que se
revelam como verdadeiros estandartes ecológicos nos lembrando da
necessidade de nos reconectarmos com a natureza.
No entremeio dos signos gerados pela justaposição estratégica das imagens,
localizamos um espaço para a contação de histórias sobre comunidades
imaginadas. Tais comunidades são retratadas na composição de fotografias de
Barbara Copque. O que você carrega em suas mãos? O que você carrega em

seu peito? Andando pelos subúrbios e periferias, a artista e antropóloga faz
esta pergunta às pessoas, enquanto captura sutilmente os pequenos detalhes
quase imperceptíveis de objetos que adornam mãos e pescoços. Através
desses enquadramentos estratégicos, vemos tatuagens, cicatrizes, calos, anéis
e pulseiras. Vemos o que essas mãos carregam e o que também levam no
peito – cordões, breves, bottons, correntes e adornos feitos de fé e coragem.
Da composição fragmentada de fotografias em formatos e suportes variados
apresentada por Barbara Copque, estendemos naturalmente nosso olhar
interessado no outro à série de pinturas “Indexados” de Yoko Nishio. A
temática de “Indexados” de 2020, celebra os enquadramentos em close que
apreendem olhares perdidos e bocas à mostra. As pinturas do díptico
“Indexados 5 e 6” narram um aspecto preciso do momento pandêmico, em que
os olhos e as bocas tinham que se manter distantes ou atrás de máscaras e
das telas dos dispositivos de comunicação. Yoko reproduziu o momento digital
de afastamento compulsório dos últimos anos em uma tela que une, em vez de
separar.
A pintura do artista Jorge Duarte “Money: wash in a fountain”, demanda do
observador certo conhecimento da história da arte. Sem perder a sua
inclinação para o humor e sugerindo uma metáfora visual típica da história do
modernismo e das vanguardas estéticas europeias, Duarte ressignifica a
imagem da famosa escultura “A fonte” (1917) de Marcel Duchamp. Nos dias de
hoje, a fonte duchampiana, segundo o que sugere o título da obra, poderia
desvendar as engrenagens invisíveis dos processos de institucionalização da
arte. O artista leva o público para um passeio na história da arte e das
imagens, ao mesmo tempo em que sustenta um curioso enigma - uma charada
artística revisitada.
A apreensão dos costumes, práticas e saberes do local é aprofundada com a
pintura em dimensão muralista de Robnei Bonifácio, “Somos trens e trilhos”
de 2021. O artista mimetiza parte dos muros das cidades, cobertos por
cartazes que o tempo se ocupou em rasgar e desgastar, sobrepondo camadas
de anúncios, de nomes, de eventos, de vivências, que dialogam com o ir e vir
dos trabalhadores em seu insuspeitado cotidiano, e o introduz nas paredes da
galeria. Também em sintonia com as tradições que ainda sobrevivem nas
periferias e subúrbios Deneir de Souza apresenta sua versão particular dos

balões de São João. Do alumínio reciclado surgem as cores pixalizadas em
formato de pequenas bandeirinhas presas por alfinetes que marcam as
festividades de inverno, formando padronagens reluzentes. Essas “pinturas-
objetos” de Deneir evocam as lembranças dos gigantescos balões carregados
de fogos de artifício que anunciavam a celebração das tradições festivas do
meio do ano. Balões de ouro e prata que encarnam o espírito das festas
brasileiras.
A exposição conta com a participação dos artistas: Bárbara Copque, Deneir de
Souza, Jorge Duarte, Robnei Bonifácio, Otávio Avancini e Yoko Nishio.
Abertura dia 15 de Julho, no Sesc de Teresópolis como parte das
comemorações dos 20 anos do Festival de Inverno.

 

 

Profª. Drª. Renata Gesomino, IART-UERJ/PPGARTES-UERJ. Crítica de arte e
curadora independente.

​

​

           

Para Suzi Coralli
01 de agosto 2021

"O plano suporta sólidos, suporta volumes, relevos, texturas, densidades, massa, transparências, peso, ar. A superfície suporta as palavras e ainda seus sentidos, suporta todas as imagens, suporta o espaço e o próprio tempo." (Coralli, Suzi)

​

Eu sabia que esta escrita chegaria de repente, silenciosa e sem aviso. Sabia que não haveria o esforço pomposo de uma atividade estritamente intelectual, debruçada profissionalmente sobre seu objeto. Por outro lado, eu também sabia que as palavras sairiam de um lugar hoje pouco revisitado, posto que provoca uma enorme e imprevisível descarga emocional.

​

Este relato, texto ou carta não é sobre mim, embora inevitavelmente entregue vivências que me são caras. Esta carta sem destinatário (vamos optar por “carta”), é sobre uma artista, professora e amiga que se despediu no ano passado (2020), depois que o mundo como conhecíamos havia acabado. Esta carta íntima, que também pretende contraditoriamente ser uma homenagem pública, é sobre e para Suzi Coralli, que também me chegou de repente, silenciosa e sem aviso no distante ano de 2000.

​

Foi com a Suzi que tive o meu maior aprendizado sobre a técnica, a materialidade e os meios da pintura. Com ela aprendi a preparar os fundos das telas e das lonas que eu esticava sobre enormes tapumes. O procedimento era simples: uma mistura de alvaiade em pó, água e cola e pronto! Tínhamos um fundo resistente, preparado para o uso subsequente da têmpera vinílica que também produzíamos repetindo um ritual parecido: “pó xadrez, água e cola cascorez de rótulo laranja”, alertava ela.

​

Descobri com ela o que era “fatura”, o que era um plano, o que era superfície e a natureza multifacetada dos suportes. Entre um cigarro e outro ou muitos, aprendi a ver e a ler a vida oculta das superfícies ainda em branco. Essas planícies desertas que nos assombram no momento anterior ao da criação, ao insight,[1] seja ele bom ou ruim, se tiver que vir que venha!

​

Aliás, foi por influência direta da Suzi que descobri e assumi a “má pintura”. Foi em uma de suas aulas na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, que desenvolvi a minha própria “ideia de pintura”[2] e que libertei o meu gestual expressionista e tresloucado. Um gesto que era mais performance planejada do que ato espontâneo e que dizia muito mais sobre minha sanidade do que sobre a falta dela. Em contraste com sua obra de pequenas dimensões e quase sempre abstratas, eu pensava que havia algo de suspeito no equilíbrio calculado das formas. Havia algo de patológico naquela busca por simplicidade. Na época eu não entendia exatamente como as superfícies poderiam suportar todo o peso daquelas palavras, daquelas frases fragmentadas, daquela vivência alucinada e que se arregalava como olhos famintos diante de mim. Naquela época eu não conseguia ouvir a música por trás da geometria sensível e misteriosa, por trás das transparências do silicone, da textura estranha que reivindicava uma presença qualquer. Achava engraçado e absurdo o relato da dança sufista[3], do delírio místico, dos rodopios mágicos, das orações[4] com palavras que eu não compreendia — não tinha maturidade para compreender — e que desapareciam por trás dos grandes campos de cor. Existiram de fato?

​

Aparentemente a pintura de Suzi Coralli escondia mais do que revelava, diferente dela. Suas obras começaram a ganhar espaço na cena artística durante a década de 1980.  Pertencente a uma geração de artistas jovens e descolados impulsionados pela redemocratização no Brasil, boa parte desses artistas se projetou fazendo uma ponte entre a Escola de Belas Artes da UFRJ e a Escola de Artes Visuais do Parque Lage, sobretudo como consequência do sucesso de público e de mercado da exposição “Como vai você, Geração 80”? curada pelo crítico de arte Marcus Lontra em 1984.

​

A pintura de Suzi Coralli era para iniciados. Forjada com códigos muito especializados e muito sofisticada na economia de elementos, tinha como pares estéticos obras de artistas das vanguardas europeias como Malevitch e Mondrian, dos neoconcretistas cariocas, de Lúcio Fontana, até alcançar os expressionistas abstratos norte-americanos.

1.jpg

1. Instalação " Instrumentos de pintura".

Museu do Ingá em Niterói, RJ.
Material: Madeira, plástico, alumínio, ferro e

espuma cobertos por têmpera vinílica. 1989.

A mão, a ferramenta e a técnica formavam uma espécie de Santíssima Trindade para Coralli. Sua pintura tinha aquela elegância de quem sabe medir tudo com extrema precisão e sente prazer ao traçar uma linha reta, em alcançar uma tonalidade pura, em utilizar e criar suas próprias ferramentas – que ela guardava como partes constitutivas e indissociáveis, tão valiosas quanto seus quadros. No início, aquelas pinturas eram “Greenberguianamente” planas e puras e o flerte estava no flatness[5] histórico: de Malevitch a Mondrian, visitando Barnett Newman e Mark Rothko.  A pintura de Coralli estava conciliada com a simplicidade estética da parede, com o entorno e, leve, mirava o espaço. Conscientes de si mesmas, perfeitamente autorreferenciais, discutiam tão somente os próprios meios da pintura, procurando impedir a entrada em suas superfícies de qualquer interferência ou contaminação mundana. Evitavam qualquer desequilíbrio que pudesse ser narrado, que virasse história, drama ou cena. Sem ruídos no colorfield, assumia as suas bordas rígidas — limites sutis entre a pintura e a parede. Evitava a prosa para liberar a poesia. Até que as experimentações com a textura do silicone transparente, com o relevo da borracha industrial mole e com o alumínio (rígido e metálico) começaram a ganhar espaço naquelas superfícies planas, abrindo um novo caminho; talvez um desvio entre o concreto e o sensível, entre o duro e o mole, entre a sobreposição e a transparência, conservando as marcas do gesto, do movimento, da passagem de algo – de uma presença qualquer.  Eis, então, algumas pistas que ela deixou por escrito como um manifesto em sua dissertação de mestrado:

 

               Afirmo a planaridade da pintura em cada item aqui discriminado. Posso também me utilizar      dos apontamentos e da pintura direto na parede, como quem expõe as vísceras ou a estrutura de um pensamento em pintura.

         Procuro afirmar como um conceito constituído na pintura, o esqueleto do apontamento: energia invisível ou um gesto residual que com um lápis “pintou” a linha na parede e que com silicone (corpo transparente) congelou o gesto calculado no presente.[6]

 

Como seria possível materializar um nascimento, vida e morte na superfície de um quadrado perfeito, sem nenhuma ilusão, sem nenhuma narrativa, sem representação? As linhas são intervalos, ruídos ou conectivos que guiam a direção do nosso olhar. Há cálculo no acaso?

2.jpg

2. Suzi Coralli.

"Série Paisagem e Luto"

Pinturas. Tinta acrílica sobre madeira,

50x50cm cada Módulo. 2003.

Não é a afirmação autorreferencial a manifestação psíquica mais óbvia do desejo de se transformar em outra coisa? Os campos de cores pulsantes de Suzi Coralli são atravessados pela textura de aparência permanentemente úmida. A superfície é friamente seccionada por linhas que separam os acontecimentos, criando um “não-lugar”. A artista evoca um tipo de zona fantasma, estas “feitas com pigmento branco (zinco/titânio) são pura luz nesta monocromia” (CORALLI, 1999, p.13), e pretende escamotear quase tudo que seus títulos revelavam explicitamente para um observador atento e curioso.

3.jpg

3. Suzi Coralli

"Série Paisagem e Luto"

Pinturas. Tinta acrílica sobre madeira,

50x50cm cada Módulo. 2003.

No início dos anos 2000 a pintura de Suzi Coralli codificaria o luto. Talvez atrás de cada quadro haja ainda uma oração escondida ou um fragmento de algum ritual de limpeza espiritual para ser seguido ou uma dança catártica para expurgar a tristeza. Talvez o avesso dos quadros seja o testamento da imagem de uma paisagem morta, como uma carta sem destinatário que insistimos em escrever sem enviar.

​

O amor (pela arte) foi talvez o tema mais constante em todas as fases da pintura de Coralli, que, podemos afirmar, é também uma pintura construtiva procedimental. Assim, a artista elaborou metodicamente algumas etapas do seu processo criativo, como um manual técnico que pode ser enumerado da seguinte forma: (1) aceitação da parede (interferência do mundo) como parte formal constitutiva da obra, como espaço ou suporte; (2) criação de “linhas” a partir do uso da matéria como borracha industrial e alumínio; (3) a escolha do formato da tela (espaço e forma), que em si também já é pintura; (4) a espessura da tela, que é mais uma área que pode ser pintada, sujeita a variações; (5) o uso irrestrito da cor, entendida por Coralli como pura sedução,  “A cor é fascínio e preocupação, ora ela pode ser ausência perpetuada pelo gesto, ora ela pode ser pura e contrastante” (CORALLI, 1999, p. 8).

​

Para Coralli o ato de pintar é equivalente ao ato de construir. Juntamente a essa ideia construtiva, a artista apresenta também uma espécie de jogo de quebra-cabeças. Suas telas – aqui chamadas também de módulos – são como peças de um quebra-cabeças a espera da montagem final. Cada peça é projetada para ser unida (aparafusada), muitas vezes transformando a parede em um plano adjacente.

Se a cor é pura sedução, as formas geométricas que só aparecem ao final da montagem revelam outro tipo de beleza. Essa beleza ulterior jaz na poesia racional de uma geometria objetiva.

Entretanto, a pintura de Coralli também revela um desejo particular de transcender à forma rígida e de ocupar o espaço circundante, de se imiscuir e se dispersar. Sua pintura pode ser sobre luto, vida, amor, poesia, gesto, desenho, linha, sedução, geometria objetiva e articulação com o espaço – é conceito e matéria, é resgate moderno em tempos de esgotamento. É um presente de amor para os iniciados.

4.jpg

4. Suzi Coralli. Sem título.

Duas telas, uma amarela e outra vermelha, uma placa de

acrílico com silicone, parafuso e apontamento em grafite

sobre a parede. 1995.

Exposição coletiva, Solar da PUC-RJ.

NOTAS

​

[1] Compreende-se por Insight  [...] a visão intuitiva. Sabemos de repente, temos inteira certeza, que desde o início era esse o seu significado. (OSTROWER, Fayga. Caminhos intuitivos e inspiração In: Criatividade e processo de criação. 27ª edição. Petrópolis-RJ: Editora Vozes, 2012. p.67

[2] “Ideia de pintura” foi o nome do curso de pintura ministrado por Suzi Coralli entre os anos de 2000-2001 na Escola de Artes Visuais do Parque Lage e que tive a oportunidade de cursar sem pagar graças à generosidade da Suzi.

[3] O  sufismo  afirma  as  normas  da  tradição  islâmica  e,  ao  mesmo  tempo,  aponta  para  suas limitações.  Se  a  lei  no  Islã  é  reconhecida  como  a  dimensão  externa  da  religião,  o  sufismo  traz consigo o significado interior dessa lei, contudo, as duas realidades são inseparáveis. Portanto, o sufismo  tem  sido  definido  como  o  aspecto  místico  da  tradição  islâmica.  O  sufismo  é  pensado ainda  como  a  dimensão  esotérica  do  Islã  que  conduz  o  devoto  a  uma  experiência  pessoal  do mistério da unidade de Deus (PINTO, 2010, p. 101; SCHIMMEL, 1975, p. 17).

[4] Suzi Coralli relatava uma aproximação entre as etapas do seu processo criativo e alguns rituais do sufismo. A artista foi praticante do sufismo durante um certo período de sua vida e, como alguns artistas das vanguardas estéticas abstratas, mantinha uma relação misteriosa com a antroposofia.

[5]O Flatness ou Planaridade consiste na eliminação do tradicional modo de representação pautado na concepção do espaço renascentista, ou seja, com a ilusão da tridimensionalidade. A planaridade impõe a construção de um espaço bidimensional e sugere ainda uma trilha linear e evolutiva da pintura ao longo da história (fundamentação da narrativa mestra do crítico de arte norte-americano Clement Greenberg). Cf. CHIPP. H.B. Clement Greenberg, Abstrato, representacional e assim por diante In: Teorias da Arte Moderna. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 1996.

[6] MOREIRA, Suzi Coralli. Pintura como campo de intenções. Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Belas Artes, 1999. p. 9

​

​

REFERÊNCIAS

​

CHIPP. H.B. Teorias da Arte Moderna. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 1996.

bottom of page