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EXPOSIÇÃO

O Bestiário

 

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O Bestiário

Hernani Guimarães

Por Alexandre Sá

 

O Bestiário é o título de uma exposição individual de Hernani Guimarães, aluno do Doutorado do PPGARTES/UERJ que tem uma formação consideravelmente particular como artista, já que possui um prévio estudo aprofundado sobre o desenho e a pintura mas que optou ao longo dos últimos anos, por escavar e encontrar possibilidades outras de abordagem no e do traço, através de uma imbricada relação entre gesto, coloração e materialidade.

 

Tais escolhas e movimentações não se deram por uma simples adequação a uma tendência narrativa atravessada pelo universo da repetição e do rebanho, mas talvez, por um desejo inconteste de uma busca pessoal sobre si mesmo dentro de uma esfera de experiência da qual faz parte, propondo e provocando algo de espelhamento que seja capaz de rebater algo que seja da esfera pública: o desejo como de(s)-forma-ação inconteste (e não necessariamente inconsciente). Em outras palavras, é possível arriscar que tal mudança de trajeto se deu pela naturalidade do apetite assumido em si e não unicamente pela ambição incontornável de alinhavar sua produção a algum maneirismo contemporâneo que eventualmente soterra parte considerável dos artistas em começo de carreira.

 

Bestiário pode ser lido também como uma referência aos textos descritivos que ganharam notoriedade a partir do século XII, sendo utilizado pela esfera religiosa por seu caráter moralizante e que através de uma certa narrativa fantástica, construíam histórias que fomentavam algo (além) da imaginação, utilizando como elementos principais, seus animais eventualmente animados e em sua maioria, não naturais. As feras. Repositório de algum segredo para que a estrutura discursiva pudesse se consolidar historicamente entre o vício e a virtude. Como se fosse possível construir através da imagem, relações entre o sensorial e aquilo que lhe escapa.

 

De todo modo, é a partir da tentativa de dominação de tal ímpeto originário não reconhecível na realidade concreta das coisas do mundo, que a figura humana se coloca como agente de domínio, domesticação, morte e possibilidade fálica, sentido este último cooptado como eixo estrutural obviamente potencializado nos séculos seguintes, inclusive pela própria igreja, quando vagarosamente, tais elementos fantásticos são eliminados, endossando imagética e imaginariamente, a legitimação do seu, do nosso e de qualquer processo colonizatório.

 

É possível afirmar que no caso dos trabalhos aqui expostos, trata-se de um avesso desse processo histórico. Ou de um certo disfarce de avesso. E reside neste nó intransponível, nesse obstáculo simbólico, a fonte abismal que alimenta o trabalho de Hernani Guimarães. Através de um conjunto de imagens coletadas nas redes sociais, imaginário inevitável dos dias de hoje, os corpos retratados atravessam uma operação particularmente curiosa de esvaziamento. Se é possível compreender que lhe resta uma fantasmagoria gráfica que poderia vir a ser aderida ao processo de reprodutibilidade turística de si, sobram-lhe instrumentos semânticos que elidem tal possibilidade porque jogam tais imagens, inclusive a série de autorretratos e do Laocoonte (estas últimas não tendo a rede como fonte), em uma esfera perversa de uma alegoria emudecida. À força.

 

Paradoxalmente hipotético, trata-se de uma alegoria desamparada que perde seu referente. Que vaga nas ruas de maneira trágica em busca de algo perdido e jamais a ser reencontrado. Como alguém, com uma placa com um nome qualquer esperando um passageiro aleatório em um aeroporto fechado durante dois longos anos diante da tempestade que destruiu suas pistas de pouso. Em nós.

 

Embora seja possível incorrer no falso engano que o traço é sempre índice, neste caso, mesmo quando gesto, há algo de honesto e transparente na abissal insegurança trêmula que se coloca ali, bem como na fragilíssima materialidade escolhida que talvez, por ter certeza de seu cadafalso, jamais aposta na duração e no devir-permanência. Resta um riso frouxo diante do “sistema de arte” e uma negação encantada e ao mesmo tempo, velha, de tais lógicas de veiculação e circulação. Riso esse sampleado a uma angústia avassaladora. Como o gato de Alice que ainda nos olha, aqui, de dentro do tal aeroporto acabado, segurando uma placa rota com o nome de ninguém.

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