VOZES
Victor Tufani
Professor de artes visuais, pesquisador, ilustrador e comunicador visual. Mestrando em Arte e Cultura Contemporânea (PPGARTES/UERJ).
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ESTÉTICA EM CRISE
parte 1: Da vanguarda ao bolsonarismo
01 de agosto 2021
“A crise é estética!” — você deve ter lido ou ouvido alguém repetir a frase nas redes sociais, no Youtube ou até nos jornais, referindo-se, é claro, a manifestações da extrema-direita brasileira atual. Atribuo o bordão a Vinícius Carvalho, amigo cronista e jornalista independente que já o emprega há anos, desde que as bandeiras partidárias e de organizações de trabalhadores foram trocadas por uniformes em verde e amarelo nas manifestações de rua.
Mas o que significa dizer que a crise brasileira é estética? Quando é que ela começa, ou então adquire essa natureza? O que explica a percepção de um “Brasil bolsonarista” que se impõe contra um Brasil que deveria ser de todos e todas? E, mais importante: Se a crise é um componente do bolsonarismo, movimento que vai além de Jair Bolsonaro, o que é possível fazer para superá-la? Nesta primeira parte sobre o tema, começo a investigar algumas dessas questões.
Com o fim da Segunda Guerra Mundial e a derrota do nacional-socialismo na Alemanha, operou-se um giro no rumo político no ocidente, do antifascismo para o anticomunismo[1]. A impossibilidade de prosseguir em guerra franca e a ameaça de mútua destruição, com o advento das tecnologias nucleares, levaram os polos capitalista e socialista a uma disputa híbrida de longa duração, que empregava a cultura como um dos elementos fundamentais de demonstração de força e coesão social (chamo a atenção aqui para a diferença entre afirmação cultural e a mera propaganda empregada pelos regimes fascistas). Essa reorganização geral — necessária para garantir a continuidade da guerra — contribuiu para a reabilitação de uma “pedagogia revolucionária” desde sempre presente nos movimentos operários, que visava à transformação da consciência individual como etapa do processo de transformação social. Assim, ao longo dos anos 1950 e 60, disseminou-se amplamente entre as esquerdas dos países capitalistas o ideal de formação do “Homem novo”: Somente o trabalhador consciente e adequadamente aculturado estaria capacitado a demandar a revolução social[2]. Na América Latina, essa tendência foi animada adicionalmente pelo êxito da Revolução Cubana em 1959.
Nesse período, uma das táticas empregadas pelos partidos e movimentos sociais, a fim de viabilizar sua pedagogia revolucionária, foi a instrumentalização das artes. Muitos artistas, direta ou indiretamente envolvidos em organizações políticas, aderiram a essa tendência geral, afirmando em suas obras, debates e proposições a necessidade da ação artística politicamente engajada.
O caso brasileiro é particularmente complexo, dada a quantidade de transformações ocorridas no país desde meados do século passado: A modernização, o florescimento dos sindicatos e movimentos populares, a posse de João Goulart e a reabilitação do presidencialismo, a perspectiva de realização das reformas de base (com a reforma agrária no centro do debate político[3]) e a consequente reação das classes dominantes e do imperialismo, que resultaria no golpe de 1964 e na promulgação do AI-5 quatro anos depois, inaugurando a fase mais repressiva da ditadura.
Todos esses acontecimentos foram acompanhados por efervescentes debates e uma profusão criativa no campo das artes. Do concretismo e neoconcretismo, duas principais correntes que “haviam se enfrentado em fortes batalhas teóricas nos anos 1950”[4], até “Do Corpo à Terra”, de Frederico Morais, que, de acordo com Paulo Reis[5], constituiria “o último momento de um projeto de vanguarda nacional comprometida”, já no ano de 1970, o que se verifica é uma sucessão de ideias e práticas às vezes antagônicas que confluem, com particular intensidade na década de 60, para um projeto de solidificação cultural e de afirmação de uma identidade nacional brasileira, tema de grande interesse dos programas modernizantes desde o início do século XX[6]. Esse interesse pelo nacional, em contraste com as pretensões universalizantes das vanguardas europeias, foi uma característica marcante da vanguarda brasileira. Como Hélio Oiticica registra já em março de 1968, a poucos meses do AI-5.
“A conceituação da Tropicália [...] veio diretamente dessa necessidade fundamental de caracterizar um estado brasileiro. [...] Tropicália é a primeiríssima tentativa consciente objetiva de impor uma imagem obviamente brasileira ao contexto da atual vanguarda e das manifestações em geral da arte nacional. [...] Propositadamente quis e, desde a designação criada por mim de Tropicália (devo informar que ela foi criada por mim, muito antes de outras que sobreviveram, até tornar-se a moda atual) até os seus mínimos elementos, acentuar essa nova linguagem com elementos brasileiros, numa tentativa ambiciosíssima de criar uma linguagem nossa, característica, que fizesse frente à imagética Pop e Op, internacionais, na qual mergulhavam boa parte de nossos artistas.”[7]
Chama a atenção a “imagem obviamente brasileira” a que HO se refere. A afirmação de uma identidade nacional compreende, naturalmente, sua expressão estética, e a criação de imagens e sensações coerentes com a identidade pretendida era uma tarefa autoatribuída pelos artistas da vanguarda.
Retomando a tendência geral da época, de canalização da cultura até o centro da disputa geopolítica, fica mais evidente a necessidade apontada pela vanguarda de articular, desde o campo estético-político, uma identidade nacional que desse conta da pluralidade e do contraditório da cultura brasileira, contra as pretensões autoritárias de fabricação do tipo limitado, ordeiro, provinciano e conservador desejado pelo regime militar. A prática artística e a aquisição de uma “nova consciência do movimento estético, em patamar superior”[8] correspondia, então, à própria construção do “Homem novo” e da nova sociedade.
Essa tentativa de articulação direta entre arte e política — e, portanto, entre arte revolucionária e a revolução propriamente dita — foi obstruída pela promulgação do AI-5. A imposição da censura prévia, a conversão da crítica ao regime em subversão e a fabricação abstrusa do inimigo interno provocaram uma ruptura no projeto da vanguarda. O franco enfrentamento político deu lugar a manifestações “marginais” e contra culturais, e, apesar da continuidade da resistência e oposição ao regime, “suas atitudes artísticas ganharam formas (e meios) muito distintos”[9].
Os Atos Institucionais não suspenderam por completo a possibilidade de crítica ao regime. Eles serviram, antes, para organizar a oposição de acordo com o projeto hegemônico. Esse é um dado importante, porque ajuda a compreender que o sentido de autoritarismo da ditadura militar brasileira era já algo transformado pela experiência traumática do nacional-socialismo, e essa transformação tensiona a sua relação com o que se entende por fascismo.
O bolsonarismo, um nome possível (temporário, talvez) para o movimento autoritário e reacionário do Brasil de hoje, carrega sem dúvida um componente fascista transformado muito forte, assim como se deu com a ditadura militar. Investigar esse componente fascista é obrigatório para entendermos o desdobramento estético do regime que ele tenciona inaugurar. Mas é preciso buscar, antes de classificar esquematicamente esses períodos como estritamente fascistas (um equívoco de muitas esquerdas atuais, que acabam banalizando a expressão), o que há de comum entre eles sem estrangular suas particularidades históricas.
Manifestações da extrema-direita no dia 1o de maio de 2021 nas cidades de Arapongas/PR e São Paulo/SP. À esquerda a faixa exibe o slogan empregado contra opositores da ditadura militar. À direita, a referência à ameaça comunista. A expressão “Eu autorizo” responde a uma declaração de Jair Bolsonaro em abril de 2021, ocasião em que o presidente disse aguardar autorização “do povo” para agir de forma autocrática. Fotos: José Luiz e Abraão Soares
Para Adorno[10], a experiência nazista, embora irrepetível, era a referência obrigatória de fascismo no século XX. É natural que assim fosse, porque o nacional-socialismo foi bem-sucedido em executar a ameaça fascista: Ele procedeu à eliminação física do inimigo causador da desordem social e econômica, que é, senão a finalidade (pois pode-se dizer também que o fascismo não tem uma finalidade propriamente dita), pelo menos o clímax de sua propaganda e de seu roteiro programático.
Os dispositivos legais e humanitários transnacionais criados após a vitória sobre o nacional-socialismo em 1945 impuseram ao fascismo a necessidade de um reordenamento em termos da sua propaganda, comunicação e ação. É particularmente sintomático o “efeito cumulativo” da propaganda fascista dos anos 1960, período em que Adorno situa o ressurgimento do radicalismo de direita na Europa: Veículos e porta-vozes neonazistas, não podendo mais ser abertamente antissemitas, recorriam a uma forma de comunicação provocativa em que reafirmavam seu propósito de maneira dissimulada, tomando o cuidado de nunca serem claros o bastante a ponto de serem incriminados. O que importava era que fizessem esse mesmo jogo muitas vezes, de forma a produzir o efeito cumulativo desejado, até o ponto em que fosse impossível não ver o que eles realmente queriam dizer[11]. O leitor talvez identifique aqui uma tática do bolsonarismo, que aposta na bravata diária contra as instituições e adversários políticos, sem, no entanto, ameaçar explicitamente a ordem democrática, de modo a escapar das consequências legais e simultaneamente manter em constante agitação a base de apoio: “Não podemos dizer nada sobre isso, mas nos entendemos entre nós. Todos sabemos o que queremos dizer”[12].
Recorro a este exemplo para retomar a situação dos artistas e opositores do regime militar diante da promulgação do AI-5. As ditaduras militares em toda a América do Sul[13] valeram-se da fabricação do inimigo interno (segundo a lógica da Guerra Fria) e assassinaram seus opositores. Mas o trauma deixado pelo holocausto e a mobilização no sentido de evitar o seu esquecimento e (principalmente) a sua repetição impuseram aos fascismos posteriores ao período nazista a tarefa adicional de fabricação da intencionalidade desse inimigo. Dito de outra maneira, não bastava mais ser judeu para ser um alvo (pois os dispositivos legais visavam neutralizar justamente a disposição “imunológica”, abertamente racista, do nazifascismo); era preciso ser acusado de conspiração. Isso também pode ajudar a explicar por que esse inimigo abstruso passou a ser identificado com uma forma fantasmagórica de comunismo. Esse deslocamento de marcação da identidade para a ação (embora, em última análise, sempre remeta ao antissemitismo) suspenderia a possibilidade de o regime vitimar o inimigo “inocente” — ele optou por ser subversivo e, portanto, está justificada a censura, a perseguição, a prisão, a tortura, o assassinato etc. em nome da manutenção da ordem e da segurança nacional. Se esse modo dissimulado de operação permitia aos alvos do regime a possibilidade de escapar à repressão (inclusive para os artistas que deram prosseguimento à criação comprometida com a crítica e resistência à ditadura), ele também ajudou a estruturar a ameaça permanente daquele fascismo contra seus adversários: Se não quiser morrer, comporte-se de acordo.
Novamente, pode-se argumentar que é errado transpor esquematicamente essa operação para os dias de hoje. Na década de 60 havia a Guerra Fria; em 2018, ano de vitória do bolsonarismo nas urnas, não. No entanto, em ambos os casos a “ameaça comunista” (atualizada em tempos mais recentes para o “marxismo cultural”) e o desejo de destruir seus agentes (hoje identificados com as minorias sociais, cotistas, funcionários públicos etc.), que animou a extrema-direita em seus movimentos pelo golpe de 1964 e consecutivamente pela eleição de Jair Bolsonaro em 2018, não existia substantivamente.
Essa aparente falta de lógica e a “forçação de algo em que não se acredita totalmente”[14], algo que já se verificava no nacional-socialismo, é outro traço do componente fascista presente no bolsonarismo. É justamente quando o desenvolvimento social se dá quase inteiramente dentro dos limites e regras fixadas pelo reformismo liberal-democrático, quando o comunismo se encontra praticamente derrotado e impotente e uma revolução socialista é impraticável, que o delírio fascista ganha força:
“Com frequência ocorre que convicções e ideologias, justamente quando elas não são mais de fato substanciais devido à situação objetiva, assumem então seu caráter demoníaco, seu caráter verdadeiramente destrutivo. Afinal, a caça às bruxas não ocorreu na época do alto tomismo, mas na época da Contrarreforma.”[15]
Esse somatório de delírio, sentimento de catástrofe social (que ao mesmo é rejeitada e desejada), ressentimento (sentimento de falta introjetada como prejuízo), medo do inimigo oculto e onipresente (ao mesmo tempo fraco e forte), a supervalorização da consciência nacional, além do próprio rebaixamento das condições materiais, que provoca um desarranjo da consciência de classe (burguesa) fixada sobretudo nas camadas médias, combina-se com “uma extraordinária perfeição dos meios propagandísticos, no sentido mais amplo, e uma abstrusidade dos fins que são aí perseguidos”[16] para a reorganização e disseminação social do fascismo.
Manifestações da extrema-direita em 1964 e 2018, respectivamente. Fotos: Reprodução / Twitter
A afirmação de que a “crise” atual é estética pressupõe identificar a “ponta” estética do bolsonarismo. Podemos arriscar nomear um tripé político-teológico-estético que se combina para a manutenção da propaganda e perpetuação desse componente fascista do movimento.
A ponta política, ou político-ideológica do bolsonarismo, é o seu componente fascista propriamente dito — no caso atual, acoplado a uma série de dispositivos neoliberais. A novidade do bolsonarismo está na transposição do discurso fascista “tradicional” de preponderância do Estado para a constituição, muito mais cínica, finalista e violenta, de um Estado militante subserviente aos interesses do capital financeiro, em que “a economia é a própria pátria”[17].
Como ponta teológica, proponho observarmos a noção de “batalha espiritual” disseminada pela extrema-direita religiosa: Uma guerra sem fim contra o inimigo diabólico que nunca dorme e está sempre em movimento; contra o qual é preciso estar permanentemente vigilante e oferecer-lhe o combate de forma proativa. O mal que se quer derrotar aqui é abstraído já na interpretação do trecho bíblico que dá origem ao conceito, na Carta aos Efésios: “...Não temos que lutar contra a carne e o sangue, mas contra [...] os príncipes das trevas deste século, contra as hostes espirituais da maldade”[18]. Um inimigo fantasmagórico absolutamente coerente com a fabricação fascista da ameaça oculta.
A terceira ponta, estética, que mais nos interessa compreender, para podermos a ela resistir[19], tem em comum com as demais o fato de que se alimenta da própria crise, isto é: O bolsonarismo precisa, para que não se desmobilize, emular um estado de angústia permanente entre seus apoiadores. A crise atual não é apenas fruto dos excessos destrutivos provocados ciclicamente pelo desenvolvimento do capitalismo, mas uma crise consciente e objetivada, cujo propósito é não ser resolvida[20]. A pacificação resultaria no próprio fim do processo fascista, e é contra isso que se dirige a sua estética particular.
Nas próximas partes sobre a estética da crise, me debruçarei mais detidamente sobre cada uma dessas pontas, mas quero agora voltar à declaração de Hélio Oiticica e à tentativa de afirmação da identidade nacional pela vanguarda — tentativa, como já vimos, atropelada pelo AI-5, um processo que de certa forma se repete em 2018 com a eleição de Jair Bolsonaro.
O último grande ato de oposição ao bolsonarismo durante a campanha presidencial foi o “Ele Não!”, manifestação histórica de liderança feminina que reuniu o maior número de mulheres em protesto na história do país[21]. Na ocasião, não se criticava apenas a misoginia presente no discurso e nas atitudes do então candidato e seus apoiadores: As manifestações falavam do fascismo, racismo, do próprio AI-5 e da impunidade garantida aos perpetradores da ditadura militar.
Ao mesmo tempo em que representou a mais potente demonstração de contrariedade à iminente eleição de Bolsonaro, o “Ele Não!”, amplamente coberto pela mídia tradicional e independente, forneceu às redes sociais associadas à extrema-direita a mais rica coleção de imagens empregadas na “identificação do inimigo”. Cada cartaz, cada faixa defendendo a legalização do direito ao aborto, o movimento feminista, os direitos da população LGBTQIA+, a reforma agrária, a preservação ambiental, até a cor roxa das bandeiras e camisetas usadas pelas mulheres em protesto foram convertidas, no espaço gregário das redes bolsonaristas, num mapa estético do que deveria ser rejeitado pelos seus eleitores e massacrado pelo componente fascista, uma vez que este fosse vitorioso. Que esse massacre previsto não tenha se concretizado, não significa que os objetivos da extrema-direita não tenham sido alcançados, no contexto de um fascismo transformado e que, ainda que deseje “ser abertamente antissemita e matar o judeu”[22], já operou a conversão de seus métodos e, se não massacra pela eliminação física, emprega uma variedade de expedientes (jurídicos, morais) visando à desmoralização e progressiva repressão e retirada de direitos de seus opositores.
Essa estética e o discurso presentes no “Ele Não” expressaram, então, uma tentativa de solidificação cultural e afirmação da identidade nacional progressista em nossos tempos (ou, ao menos, uma tentativa de salvaguardar o processo formativo dessa identidade democrático-plural expressa pelo slogan “Um País de Todos e de Todas”, malgrado sua degradação iniciada em 2016), assim como a vanguarda tencionava realizar, nos anos 60, a partir da arte social e politicamente comprometida.
Se o AI-5 e o “Ele Não” podem ser identificados como eventos de ruptura das intenções progressistas e de contestação ao autoritarismo crescente do período anterior aos regimes/movimentos que o golpe de 1964 e a eleição de Jair Bolsonaro inauguraram, era/é preciso manter em suspensão essas pretensões progressistas e democratizantes, para que elas não ultrapassem o esquema de organização da oposição pelo regime. O expediente empregado pela ditadura foi a própria censura e a suspensão dos direitos de manifestação, reunião etc. até 1978; no caso do bolsonarismo, o que experimentamos hoje é a indução permanente da paranoia e do conflito que culmina na cumulativa ameaça de golpe.
À esquerda: Jair Bolsonaro recebe do artista plástico Rodrigo Camacho um retrato feito de projéteis. À direita, acima: Bolsonaristas se fantasiam de militares em março de 2021. Na ocasião, o Comando Militar do Leste informou, em nota oficial, que os manifestantes eram “ex-militares e civis em geral”[23]; No meio, a imagem do olho que chora com as cores da bandeira nacional, uma “síntese memética” dos sentimentos de revolta e luto contra a corrupção generalizada e a suposta destruição do país. Abaixo, a declaração de Jair Bolsonaro após a morte de Lázaro Barbosa, criminoso que ganhou notoriedade após ser perseguido durante vinte dias por centenas de policiais. Fotos: Reprodução / Twitter
A “crise estética” de que falamos é justamente a percepção da mobilização das linguagens “artísticas” (com aspas, porque é imprescindível sopesar o papel da indústria cultural neste caso) e, mais amplamente, da cultura visual e discursiva no sentido de manter em constante tensão as bases apoiadoras da extrema-direita e impedir que os sentimentos de raiva, ressentimento, angústia etc. que alimentam a “forma psicanalítica”[24] do fascismo arrefeçam. É, de fato, como se houvesse uma permanente provocação no sentido de afirmar-se bolsonarista (tanto mais truculentamente quanto maior é a violência imposta pelo governo) contra “o resto”, que se expressa naquilo que já conhecemos: O uso de óculos escuros, camisetas verde e amarelas, imagens da bandeira nacional (com um olho que chora no lugar do céu positivista) nas redes sociais, hostilização de artistas e intelectuais, além do palavrório associado ao componente fascista e protofascista — “Bandido bom é bandido morto”, “CPF cancelado”, “não merece ser estuprada” etc.
Por fim, é preciso lembrar que de nenhuma maneira essas demonstrações caminham em sentido separatista, ou de formação de uma seita (ainda que carregue as características de uma). Ao contrário, o sequestro das ideias de nação e democracia é outro traço do fascismo ressurgente. Os nazistas trocaram a bandeira da república de Weimar transformando a sua bandeira partidária em nacional. O bolsonarismo, ao contrário, se apropria da bandeira nacional como quem afirma: “Somos nós os verdadeiros brasileiros”. De certa maneira, é também a reedição do ufanismo do período ditatorial militar, que visava ao expurgo, transformando opositores do governo em “inimigos da pátria” (e, como dito anteriormente, para o bolsonarismo, essa pátria é a própria economia). O sequestro da democracia, também denunciado por Adorno, segue a mesma lógica: “Evocam sempre a verdadeira democracia e acusam os outros de antidemocráticos. Desaparece (assim) o que é abertamente antidemocrático”[25].
Como sempre, diante desses momentos em que o que nos ameaça é a própria barbárie, retornamos à questão leninista: “O que fazer?”. Por ora, talvez o mais necessário seja observar esse novo radicalismo de direita, estudá-lo rigorosamente e tentar decifrar seus métodos, para que possamos neutralizá-lo de forma eficiente. Fundamental também seguir a recomendação do sociólogo italiano Domenico de Masi em entrevista recente[26]: Empreender, para além da luta coletiva contra o fascismo, a luta individual contra o adoecimento psicológico. Ler bons livros, assistir a bons filmes, escrever, desenhar, ouvir boa música, cultivar boas conversas, cercar-nos de “normalidade inteligente”, para contrabalançar essa barbárie da vida diária e das redes sociais.
Até a próxima parte.
NOTAS
[1] ADORNO, Theodor. Aspectos do novo radicalismo de direita. São Paulo: UNESP, 2020.
[2] Ver: TORRES, Carla Michele Ramos. O papel dos artistas e intelectuais do Centro Popular de Cultura (1961-1964) na construção de uma nova sociedade. In: II Simpósio Estadual Lutas Sociaisna América Latina, 2006, Londrina. Anais do II Simpósio Estadual Lutas Sociais na América Latina. Crise das Democracias latino-americanas: dilemas e contradições. Londrina: Gepal, 2006., 2006. p. 01-16.
[3] Ver: FERREIRA, Marieta de Moraes. As reformas de base. [S. l.], 1 ago. 2004. Disponível em: https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/Jango/artigos/NaPresidenciaRepublica/As_reformas_de_base. Acesso em: 26 jun. 2021.
[4] BASBAUM, Ricardo. Tropicalismo, depois: da geleia adversa à adversa geleia. Trama: Indústria Criativa em Revista. Dossiê: Paisagens sonoras midiáticas Ano 3, vol.5, agosto a dezembro de 2017: 220-227. ISSN: 2447-7516
[5] REIS, Paulo. Arte de vanguarda no Brasil: Os anos 60. 1. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.
[6] Ibid.
[7] OITICICA, Hélio. Tropicália. [S. l.], 4 mar. 1968. Disponível em: http://tropicalia.com.br/leituras-complementares/tropicalia-3. Acesso em: 28 jun. 2021.
[8] Mario Barata, apresentação, Nova Objetividade Brasileira, catálogo, Rio de Janeiro, MAM, 1967.
[9] REIS, Paulo. Arte de vanguarda no Brasil: Os anos 60. 1. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.
[10] ADORNO, Theodor. Aspectos do novo radicalismo de direita. São Paulo: UNESP, 2020.
[11] Ibid.
[12] Ibid.
[13] O documentário de Patrício Guzmán, “A Batalha do Chile” (hoje disponível na internet), mostra como o movimento da direita contra Salvador Allende recorreu ao mesmo expediente da direita brasileira, acusando uma suposta “ameaça comunista” e alimentando o delírio reacionário.
[14] ADORNO, Theodor. Aspectos do novo radicalismo de direita. São Paulo: UNESP, 2020.
[15] Ibid.
[16] Ibid.
[17] A frase ouvi de Rodrigo Guéron, filósofo e professor, na live “Deleuze & Guattari e a teoria do valor em Marx: a axiomática capitalista”, disponível em: https://youtu.be/dnX-F3JAdZc. A este respeito, ver também o seu ebook “A Vingança dos Capatazes: Bolsonarismo como Fascismo”, disponibilizado pela NAU Editora - disponível em: https://naueditora.com.br/ebook_gratuito/a-vinganca-dos-capatazes-2/?fbclid=IwAR0jSJr2MmhBotUBaDjrIutZKGzLucEFbkNcsdvzt5-c0veUzTeqcPpljtI
[18] Efésios, 6:12
[19] ADORNO, Theodor. Aspectos do novo radicalismo de direita. São Paulo: UNESP, 2020. Ver também a famosa entrevista de Adorno à revista alemã Der Spiegel em 1969, em que o autor defende sua posição como teórico e a utilidade da teoria para a resistência e prática política. Disponível em: https://files.cercomp.ufg.br/weby/up/208/o/Theodor_Adorno_ADORNO_-_MEU_PENSAMENTO_SEMPRE_ESTEVE_NUMA_RELAÇÃO_MUITO_INDIRETA_COM_A_PRÁTICA.htm?1345853881
[20] SANTOS, Boaventura de Sousa. A Cruel Pedagogia do Vírus. São Paulo: Boitempo, 2020. eBook Kindle.
[21] ROSSI, Amanda; CARNEIRO, Julia Dias; GRAGNANI, Juliana. #EleNão: A manifestação histórica liderada por mulheres no Brasil vista por quatro ângulos. São Paulo, Rio de Janeiro e Londres: BBC News Brasil, 30 set. 2018. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-45700013. Acesso em: 28 jun. 2021.
[22] ADORNO, Theodor. Aspectos do novo radicalismo de direita. São Paulo: UNESP, 2020.
[23] BONIN, Robson. Bolsonaristas fantasiados com roupas militares não são do Exército. [S. l.], 23 mar. 2021. Disponível em: https://veja.abril.com.br/blog/radar/bolsonaristas-fantasiados-com-roupas-militares-nao-sao-do-exercito/. Acesso em: 29 jun. 2021.
[24] ADORNO, Theodor. Aspectos do novo radicalismo de direita. São Paulo: UNESP, 2020.
[25] Ibid.
[26] Disponível em: https://youtu.be/cEsuWu3hQWw